Friday, December 30, 2011

Qualquer coisa sobre tudo

Foi como uma chapada. Uma chapada seca, inadvertida e barulhenta. Das que fere a mão, o rosto e deixa a sangrar para sempre qualquer coisa cá dentro. Ela apareceu-lhe como um trovão que deita abaixo a luz, a cidade, o mundo e as estrelas. Antes dela havia preto e branco e mais nada. O resto era tempo. Tempo e uns quantos lugares onde ele não tinha vergonha de se sentir sozinho. Havia margens e passeios, calçadas portuguesas e avenidas de alcatrão. Antes dela havia riso sem vontade e vontade de saber como era o riso, de verdade. Vestida de vontade, ela apresentou-lhe o riso, de verdade. Depois do riso mostrou-lhe todas as outras coisas. Porque existem sempre as outras coisas. Coisas sem nome por serem mesmo isso, exclusivas. E ela guardava-as, a todas, na roda da saia-girassol que uns dias dançava ao vento e noutros passeava à chuva. Antes dela não havia medo. Só certezas, porque sins encavalitados nas horas dos dias que sucedem as noites e histórias. Muitas histórias para fingir que a vida dá corda aos sonhos. Ele nunca percebeu se a convidou a entrar ou se foi ela quem forçou a fechadura. Se foi ela, com aquela doçura perigosa de quem sabe para onde vai, que encontrou a chave, a bússola, a senha-secreta daquele fundo de mar. Mas isso não importa. Porque isso é só o início de tudo. E depois do início, depois do acidente, dos feridos e das feridas, depois dos mirones e de todas as outras catástrofes naturais ela mantém-se aqui-ali como no primeiro dia. A brincar no meio do labirinto como quem não tem pressa para apanhar a vida. Porque a vida se calhar é aquilo, é tudo aquilo que ela segura entre o cabelo e o sorriso, enquanto se passeia com ares de princesa-feiticeira. Ela mantém-se. Imperturbável. A achar graça aos muros, às trepadeiras de silêncio e musgo que ele plantou com tanto cuidado. A pintar tudo de vermelho e a falar alto sem medo de acordar os vizinhos ‘olha, olha, vês como fica bem assim?’, como se a pergunta quisesse saber da resposta para alguma coisa. ‘Claro que quero saber’. Como se fosse possível, ou suportável, desviar o olhar e fazer de conta que ela ali não está, ou aqui, a virar tudo do avesso. A dar sentido a tudo. Ele sabe lá. Pior do que o rosto a latejar da chapada, está o coração. Pior do que os arranhões, pior do que o fim dos sentidos obrigatórios, pior do que o vermelho a galgar-lhe muros e trepadeiras, pior está o coração. Desabituado destas coisas exclusivas, o coração dele não sabe o que fazer para ter fôlego de volta, a razão, o sangue de volta, o ritmo, por favor. Porque agora há o riso. Não um riso qualquer. Agora há o riso dela. Que, assim de repente, é só o riso mais bonito do mundo. E o coração pára para ver e devorar, para não esquecer e sentir saudades. O coração e um frio estranho na barriga.

‘um dia, vou ser feliz contigo'
‘hoje é o dia, meu amor’.

Tuesday, December 13, 2011

Qualquer coisa sobre feitiços

Ela visita-o de madrugada, a horas tardias e famintas, como se dum ritual se tratasse. Assim acontece desde a primeira noite em que prometeram ficar juntos para sempre. Ou se não prometeram, queriam muito ter prometido. Às vezes, a vida não precisa de ser falada para ser verdade. Nem tem como escapar às inevitabilidades dos quereres. Que, sem querer, roubam fôlego, chão e lua cheia e profanam os territórios sagrados das certezas absolutas. No início eles resistiram. Fecharam-se em copas, espadas e valetes, fintaram sinais, semáforos e evidências, esconderam as provas do crime, meteram trancas à porta e ao coração. Esperaram que o mundo continuasse igual, mas o mundo nunca mais foi o mesmo e sucumbiram. Por isso, e sem pedir licença, ela entra-lhe pelos sonhos adentro. Como um arco-íris vestido de preto e branco. Um jogo de xadrez de linhas curvas que ganha, sempre, sem precisar de dizer xeque-mate. Não é a vitória que interessa, afinal, mas as linhas onde eles se movem. Os dois. Onde se movem e dançam e se esgotam antes do dia nascer. Onde são gaivotas e marés, alquimistas de vontades, salteadores de gestos e segredos, laço e gaiola aberta num sopro, queda livre e rede junto à relva, compasso de pulso sem ritmo. Onde são mais do que se adivinham quando ela, pé ante pé, o visita de madrugada e ele, sem a perder de vista, desenha um céu estrelado no fundo da cama.

Thursday, December 08, 2011

A seguir, quem sabe

Já estou pronta. Para quê? Espera. Estou quase. Estou quase lá. Aonde? Mais devagar, por favor, senão coro e a magia fica borratada. Mas eu gosto de ti assim. Deixa-me preparar o cenário. Esqueci-me de comprar as fitas de seda, os laços, os brilhos que aparecem no escuro. Não passei no mercado, na florista, não vi notícias nem comunicados oficiais. Mesmo assim estou pronta. O vestido podia ser novo, mas não é, os saltos podiam mais baixos, mas não são. As cores deviam ser mais minhas, menos dos outros, mais tuas também, mas descubro que afinal podem ser perfeitas desse jeito meio tosco. Estás preparado? Para quê? Tens essa mania deliciosa de querer adivinhar o fim do jogo antes do sinal da partida. Vamos por aqui então. E desta vez dá-me a mão, para o meu corpo não ousar vacilar. Porquê? Porque ele é mais teu do que as aparências denunciam. Sabias? Pega na chave, no casaco, traz o lenço, a promessa, o achado que só tu sabes encontrar. E hoje, só hoje, amanhã quem sabe, vamos ser felizes. Eu estou pronta, amor, se tu também estiveres.

Wednesday, November 30, 2011

O resto do fim

O resto não importa. Os cotovelos desmesurados do desamor, o arrepio fingido dum beijo que não chega, nem se atreve a sair de casa, a preguiça duma cama que se espreguiça e adormece de novo. Não importa a saudade, a inocência roubada, a carta esquecida no bolso do casaco. E, depois disso, também não importa o não-querer, o mal-me-quer, o tanto faz da mensagem do pecado. Desaprendi tudo. Até o que me ensinaste entre o sofá e a cama e me pediste para decorar de olhos fechados. O teu nome, escrito em maiúsculas, o tamanho da tua mão, a agarrar a minha, o calor da tua vergonha dentro de mim. E o teu cheiro, a incenso-canela, que entretanto foi parar ao quintal da vizinha. A culpa morre solteira, assim como as lembranças que carrega ao colo e abandona na primeira sarjeta. Depois do abandono, como calculas, pouco sobra para contar como foi. Mas foi mais ou menos assim. Vivemos o que havia a viver, enquanto queríamos e podíamos. Enquanto tínhamos braços para nos segurarmos (ou empurrarmos) e uma dose de loucura para nos acharmos super heróis da história que não parecia ter fim. Mas teve. Vivemos até ao limite e quando lá chegamos, ao limite, fizemos um banquete a dois. Provamos de tudo até ficarmos fartos e, sem arrumar loiça e aparato, fugimos de balão para o fim do mundo. Que não é nada do que se fala. Ao contrário, é escuro e cheira a podre, sem loja de souvenirs e monumento da praxe. Uma ampulheta de desencanto. O fim do mundo é um lugar onde adormecemos amantes e amanhecemos estranhos num vão de escada. E entre as fotografias com personagens do século passado e as poses ridículas de felicidade pronta-a-vestir, não há mais fundo do mar aonde procurar tesouro. Nem castelos com pontes para nós. Morreste-me de repente e nem por sombras procuro o teu fantasma. Porque esta cidade acordou sem ti e, contra todas as expectativas, acordou na primavera.

Thursday, November 17, 2011

Amor, quem sabe

O que o arrebatou primeiro foi a saia. A vida que lá cabia e se enchia de graça, a história daquelas cores que fugiam entre as pernas, a ousadia da dança que podia ser tango, o compasso de espera, o silêncio que resistia à música, o tempo que levou até saber quem a vestia. E passou tanto tempo. Ou talvez só umas horas, mas para ele foi uma vida toda. Passou uma vida sem aquela saia. Sem ela. De repente a música parou e ela olhou-o nos olhos. Como se lhe quisesse adivinhar segredos e pecados. E a saia deixou de importar. Como tudo o resto. Porque só aquelas duas faíscas cor de fogo, fenómeno nunca antes visto, com uma lua embalada no fundo ganharam palco e plateia. Ele julgou que ia ficar ali, inerte e entregue, para sempre. Irremediavelmente preso a uma corrente de desejo e de outra coisa que só mais tarde descobriu o que era. Ele ainda hoje insiste na saia, ela jura a pés juntos que trazia calças, pretas, prenúncio de fatalidade. Não importa. Porque depois veio o sorriso, aquele sorriso vermelho de maça-canela. O sorriso destino, paraíso resgatado, oásis urbano, torre do castelo e meio da ponte. O sorriso dela é o culpado daquela coisa que lhe tomou conta do corpo e do peito e fez dele um homem de gestos. O sorriso moldura que fica bem em todo o lado, que lhe serve de casa e romance e banda sonora. O sorriso mais bonito. Que é só dela. E que ele rouba em troca de um beijo ou dois ou três, dos que forem precisos para o mundo todo caber ali. Na curva da saia daquele sorriso.

Monday, November 07, 2011

Qualquer coisa sobre o presente

És um bocadinho assim. Corda bamba que não desenlaça, que ginga e joga, hesita e vai no vento, mas volta, sempre volta e não deixa cair. És um suspiro silencioso só para não incomodar, mas que fala verdade quando tem de ser. E às vezes, amor, tem mesmo de ser. Nunca serás rochedo, nem estrela cadente, nem navio ancorado. Porque és simplesmente mais. És o bilhete dentro da garrafa. O bilhete-promessa que não anda à deriva, que é dono de si e não desiste. Que persiste e insiste e sabe, como quem sabe o que é o destino, que um dia virá o resgate. És uma eminência de onda que ganha fôlego e vida e chão quando toca na areia. Que sou eu. És um bocadinho assim. Vão de escada esculpido para ficar, onde faço ninho e me aquieto, onde te falo ao ouvido porque o mundo lá fora pode esperar. Ou não. Porque o meu mundo também és tu. E tu não esperas, és ponto de encontro no lugar de sempre. És a mão que se entrega antes da vontade, que não mente nem aprisiona, que não se guia por mapas mas tomou de assalto as coordenadas do meu coração. A mão que ainda não queima, mas arde num fogo lento, que me abraça e diz que me ama quando nem eu, nem tu, nos atrevemos a dizer tolices em voz alta. És um bocadinho assim. Tem dias em que exageras e viras príncipe. E eu rio-me do fato, das botas e do cavalo, rio-me até te irritares e o riso se desfazer em mimo. Assobio e danço na brisa, brinco com o laço, e nesse compasso alguma coisa se rói de medo de te perder. Tu percebes e obrigas-me a dizer-lhe adeus. Eu obedeço. E liberto o medo por justa causa. Claro que sim, como não? Por que não? Porque não há nada a temer quando a bússola somos nós. E nós, meu amor, somos um bocadinho assim.


Friday, November 04, 2011

Caleidoscópio

A família. Todos os amigos. Os companheiros. As confidentes. Quem ainda não chegou. Quem deixei para trás e entretanto esqueci. As minhas coisas. Os meus tempos, compassos de espera, fôlegos, as minhas reticências. O que é só meu, o que é teu, o que é nosso. Os bem-quereres. A lareira acesa, o cheiro a café, a gata no fim da cama. A costa alentejana no verão. Andar de carro, ser conduzida, parar só porque sim, porque tem de ser, porque a vista vale tudo. Escrever. As palavras, em pedaços, duma só vez, feitas num oito ou num livro. Acordar no Porto, anoitecer em Cabo Verde e adormecer em Lisboa. Chocolate quente. Gelado de morango a saber a Veneza. Um concerto na fila da frente. A neve. Passear num bosque de Gaudi e brincar nas Ramblas ao faz de conta. E não contar nada, guardar segredo e inventar outras histórias. A Eurodisney com maça do amor. Aquele filme, a melhor música, o silêncio que não envergonha. Dançar. Perder as horas, chegar a tempo, pedir licença e dizer adeus. Sonhar acordada. Dormir em lençóis lavados. Sentir desejo. Ser desejada. Um banco de jardim à procura de companhia. O cimo da torre Eiffel, a Guernica em Madrid. Relva de deitar e amar a seguir. Incenso e caixas de música. As carteiras das avós. As mãos dos avôs. A praia. Sabonete no banho. Nadar. Covent Garden no Outono e Primavera de mãos-dadas nos Champs-Élysées. Batom vermelho. Ler em voz alta. Perfume de homem. Água de coco e vinho do porto. Ter calor, sentir frio e receber logo a seguir um abraço. Manta-sofá. Salto alto, muito alto. Falar ao ouvido, beijar na boca. Pôr-do-sol no Solar, estrelas cadentes, nevoeiro dos Açores. Sexo. Sexo com amor. Só amor. Sorrir. Chá de menta e hortelã. Uma manhã de Florença, vodka em Lodz, concerto-cruzeiro em Estocolmo. Uma roupa nova. Arrumar gavetas, achar relíquias, usar até gastar, fazer rascunho e queimar. O Lago di Como só para fotografar. Andar à chuva. Caminhadas, pão com nutela, futebol de chinelos, tartarugas a sair do mar. Descansar muito, viver tudo. Querer mais, sempre mais. O frio na barriga. O cimo da montanha e o fundo do mar. Os signos, as verdades universais que não servem para nada, as anedotas. A meninice num vestido de tule rosa. Papel de seda, folhas queridas e um laço branco de cetim. Cartas. Pedir um desejo e não esperar pela realidade. Encontrar. Ser encontrada. E saber que tinha de acontecer.

Tuesday, October 25, 2011

Qualquer coisa sobre a verdade

É verdade que te menti. Uma vez ou duas. Num impulso de cinderela. Num julgar quase infantil que a nossa história era sobre amor. Calei-te com um sim, talvez, se calhar não, não sei. Enquanto cá dentro alguma coisa morria de inveja da tua coragem a pronunciar as palavras proibidas sem vacilar. E o meu coração bateu mais devagar, indeciso e titubeante, por não saber o que quer dizer para sempre. Por pena de não caber na gaiola que escolheste para nós. É verdade que te queria querer mais. E não minto quando te chamo à noite, tu apareces vindo no nada que há à tua volta, e te peço para entrar dentro de mim sem sequer dizer olá. Não te minto enquanto te beijo e procuro nos teus lábios um motivo para tomarmos pequeno-almoço ou prepararmos juntos o jantar. E é verdade que não encontro. É verdade que o para sempre que prometes, e que é atrevido demais, deve ter-se enganado na porta. Ou no caminho de casa, tanto faz. É verdade que te menti. E depois da neblina, da penumbra, dos suores que se fingem íntimos, do calor que não aquece, há pouco de verdade para ti. Desculpa, meu querido quase amor, mas a partir de hoje a mentira fica do lado de fora. E tu também.

Sunday, October 23, 2011

Chegadas

Caminhei muito. Caminhei até o cansaço me fazer refém. Adormeci ao relento numa noite sem lua, nem estrelas ou histórias de embalar. Não tive frio e acordei na companhia das andorinhas. Fiz-me de novo ao caminho com a brisa a tira-colo e sem bússola a apontar para norte. Atravessei rios e montanhas, entre a adolescência perdida e o resto dum passado que não volta mais. Corri em campos de malmequeres e escolhi querer tudo de novo. Fiz-me menina e moça, novamente, entre girassóis que não conhecem chuva ou solidão. E num qualquer dia de verão voei para sul. Dei cambalhotas, brinquei à queda livre até me cansar de ser livre e cair. Dancei na relva molhada e, com os pés descalços, fiz de Alice. Perdi-me muitas vezes. E, nas restantes, descobri que não há destino além do lugar onde se pisa. Ou se sonha. Tropecei nas grandes certezas que há no mundo até as desacreditar. Uma por uma. Recomecei. Olhei para trás e não reconheci o rosto das pegadas que me seguiam. Aprendi a escrever o meu nome em minúsculas e a respeitar as palavras que valem mais do que os gestos. Ouvi todos os sons do silêncio até lhes adivinhar manias e humores. Desenhei um arco-íris no fim do horizonte e nadei nua num oceano abandonado na margem duma praia de ninguém. Caminhei muito. Até te encontrar. E agora, eu sei, o meu país és tu.

Wednesday, October 19, 2011

A insustentável leveza de gostar

Diz-me, por favor, como sobrevivo a mais um dia. A mais um dia deste gostar galopante que me devora a cada segundo e não pára nas meias horas. A este gostar que tatuaste entre o meu peito e o teu chão no último beijo à porta da casa que já te espera quando eu não estou. Às vezes irrito-me e abafo-o com a almofada e o sobrolho. Depois viro-me para o lado, e depressa te encontro no outro lado da cama entre sonos e sonhos. Volta de novo. O tal gostar que te ama, muito, e se enche de vaidade quando lhe dás a mão e lhe prometes um arco-íris logo pela manhã. Que se finge de sonso, surdo e altivo mas só quer saber de ti e das tuas manias de ser perfeito. Que são tuas e são verdade. Diz-me, por favor, como sobrevivo sem me perder no meio do ciclone. Onde se aprende a gostar de ti e a viver no sobressalto deste gostar. Que rouba tempo. E quando não rouba consome. Serve de tecto, de tenda, de lua cheia e céu estrelado. Diz lá, então. Como posso deixar o mundo girar e ouvir que a vida está difícil quando para mim a equação é simples. Eu e tu igual a nós. A uma felicidade feita à medida, um fato de corte geométrico, sem defeitos. Modelo único, versão moderna, relíquia numa sala secreta dum museu. Este gostar é tonto e faz o que quer. E ai de mim que falo a rimar, vejo mapas de tesouro nos sinais de trânsito, o pôr-do-sol na janela da sala. Já para não lembrar dos suspiros, que escapam mais depressa do que as palavras. Dos risos estouvados que fazem eco e acordam os vizinhos. Um dia destes somos motivo de reunião de condomínio e expulsos por justa causa. Diz-me, por favor, como sobrevivo. Como paro este fogo trepidante que ganha vida e corpo quando me abraças e me fazes esquecer que lá fora há uma selva onde ninguém se entende. Ou se ama. Se me explicares, com a mesma calma com que preparas o chá, como posso viver além de ti eu juro, meu amor, que fico contigo para sempre.

Sunday, October 16, 2011

Nada sobre o amor

Ela nunca tinha conhecido ninguém como ele. E não era pelo jeito desavergonhado de caminhar, a despreocupação do casaco sobre o ombro, muito menos pelo olhar enxerga almas. Não era nada disso. Havia qualquer coisa nele de nunca mais que a inquietava. E mesmo assim deixou-o invadir, e profanar, o território sagrado da intimidade. Ele entrou sem olhar para trás. E da vez seguinte nem bateu à porta. Escancarou-a e avançou. Com aquele ar superior de quem sabe sempre o destino, mesmo sem ler mapas. Ela rendeu a guarda. Destapou-lhe o ar de forasteiro e fez dele um homem de gestos. Uma vez, e outra, até deixar de as querer contar. E, no entanto, permanecia um manto nebuloso e turvo. O frio desassossegado daquela presença gato preto. Só mais tarde descobriu, a meio dum qualquer silêncio entre os dois, o que preferia ter deixado no esquecimento. Enquanto ele a abraçava, e beijava, com a sofreguidão dum coração abandonado ao relento ela entendeu. Ele nada sabia sobre o amor.

‘adeus.’

Vestiu-se com uma rapidez que desconhecia e deixou-o naquele lugar onde só o passado pode ficar. Num quarto vazio.

Monday, October 10, 2011

A contar vindo do céu

Não perguntes porquê. Mas pertencemos ao lugar das coisas impossíveis. Onde nada, ou muito pouco, faz sentido além do que alcançamos num abraço lilás. As perguntas não entram, as dúvidas são vetadas e o medo não tem chave. É lá onde me procuras e é lá, entre raios e coriscos, que te encontro. Todos os dias. Nesse lugar, que ninguém sabe aonde fica e que eu e tu tomamos de assalto, há primaveras e outonos ao dobrar da esquina, jardins de parar e embalar, tantas histórias para ouvir e querer viver de novo. Há coisas que não nos cabem mãos, tímidas e entrelaçadas, nem nos sonhos que tivemos antes de nós. No lugar das coisas impossíveis eu visto-me de vermelho e tu de azul. E o céu muda de cor de cada vez que sorrimos. Ora é tarde, ora é manhã, e pouco nos importa senão os gestos de meninice resgatada. O acontecer. Fazer figas, querer muito, querer tudo, jurar que é para sempre, porque assim tem de ser e não faz mal acreditar que o amor veio para ficar. E que, por um feliz acaso, sobrevive ao tempo e à vida que acontece lá fora. Por isso, meu amor, não duvides: enquanto o mundo gira o nosso lugar gira connosco. E se amanhã se fizer tarde, não te inquietes e confia, porque é já hoje que nos encontramos, novamente, como da primeira vez, na chispa do abraço lilás.

Wednesday, October 05, 2011

Qualquer coisa sobre as primeiras coisas

Sabes aquela ousadia de chegar em primeiro lugar? De jogar sem nada a perder, apostar tudo, o mais possível, por favor, rasar o chão e não cair? Sabes aquelas coisas loucas que só alguém que é feliz se lembra de fazer? Saltar, daqui para ali, voltar, conquistar o que é bom duma só vez, porque correr não basta e uma vida não chega para descobrir o tal mapa do tesouro que se perdeu no convés dum navio pirata. Querer o que é simples, o que é nosso, só nosso e partilhar muito até ser de todos. Dizer que sim, claro que sim, juntar adjectivos e predicados, convidar o amor para jantar. Sabes aquele querer muito, que não é tudo mas é quase tudo, aquele impossível que julgamos merecer? Ter na mão o bilhete premiado, receber a melhor parte sem escolher, ser salvo antes do acidente. Sabes? Perder norte, razão e não-me-toques, receber um beijo na porta da frente enquanto o mundo espera nos bastidores. Olhar nos olhos e não ter medo, olhar, mais uma vez, até corar a alma e o coração. Desaprender o significado de adeus. Não ter nada a esconder, chorar de tanto rir, e rir mais um pouco, olhar para as estrelas quando não há mais caminho para andar. E começar de novo. Sabes?

Monday, September 26, 2011

Tenho vontades que me superam

E desejos que me ultrapassam. Querer-te todos os dias, trazer-te para a minha cama, à noite. Mesmo quando não estás perto. Ver-te nas esplanadas onde me aquieto, nas vistas de mar aonde o sonho se cruza com a vida, nas beiras da estrada, nos caminhos que ainda não levam a lugar algum. Dar-te a mão e dizer-te coisas novas que aprendi duma só vez. Falar-te em francês e levar-te a passear de balão. Sossegar-te tormentos e desalentos, fazer-te acreditar que é mesmo verdade e que o mundo espera por um milagre. Que, às vezes, acontece. Pedir-te um ou dois beijos entre um gelado de morango e baunilha. E no fim, pedir-te outro. Receber-te num abraço antes da campainha. Ter-te ao meu lado quando a saudade aperta e ajudar-te a levá-la para longe daqui. Dar-te colo e chão, sofá no inverno e terraço no verão. Horas para contar tudo, minutos de urgências para agarrar. E não perder. Tenho vontades que me superam. Tantas mais. Se as soubesses, coravas.

Saturday, September 24, 2011

Qualquer coisa sobre o outono

No início havia medo. Medo em pedaços. Medo de todas as cores. Em forma de gente. E de seta que não erra o alvo. Ninguém a avisou mas ela sabia, sentia, que só podia ser medo. Aprendeu a respeitá-lo. Conquistou-lhe a atenção, deu-lhe algum afecto e umas quantas histórias de embalar. Ele nunca lhe deu nada. Nem ela ousou pedir. Bastou um primeiro olhar para perceber o que, mais tarde, virou evidência: o medo alimenta-se dos outros, nunca dele próprio. E nalgumas noites devora corações. Ela preveniu-se da investida assassina e ao pôr-do-sol começou a trancar o coração a sete chaves. E o corpo dela não tardou a decifrar as intermitências do medo. Aprendeu a gostar de cada um dos pedaços. A adivinhar o amanhecer de cada cor. Até ao dia em que o medo desapareceu e o dia acordou em silêncio. Veio então o prazer. E ela, ainda melancólica com o adeus sem despedida, pintou o céu de azul. No segundo dia vestiu-se de vermelho e brincou às escondidas com o prazer até se cansar e adormecer, exausta, num banco de jardim. Algum tempo mais tarde compreendeu que o prazer jamais se divide em pedaços. É um corpo maciço e livre. Caleidoscópio de emoções palpáveis e galopantes. Metade sonho, metade perdição. Labirinto de dúvidas e senãos. Ela distraía-se muitas vezes com o prazer e só nos dias cinzentos voltava a si. Ou ao que restava de si. Dava-lhe tudo. E quanto mais lhe dava mais ele pedia. E ela dava mais ainda. Não sabia resistir-lhe. Onde dantes havia caminho de terra apodrecida pelo medo nasceu um campo de girassóis. E o silêncio fez-se riso. Não o dela, mas o deles. O riso perfeito do prazer dentro dela. Numa noite de estrelas no chão ela deixou o coração à solta e, num impulso, o prazer tomou-o de assalto. Sem saber o que fazer, agarrou-o bem forte e matou-o por asfixia. Foi então que ela descobriu a solidão. E a solidão deu-lhe tempo para sarar as feridas do medo e do prazer. Deu-lhe fôlego e meio da ponte. Parar, sentar e não desejar outro lugar senão aquele: onde a vida se permite interromper por tempo indeterminado. A solidão deu-lhe tudo. Um começar de novo. E ela, marinheira de primeira viagem, gostou do horizonte oferecido de presente. Ao longe, avista um cheiro que não conhece. Talvez de amor. Mas ela não sabe. Nem quer saber. A solidão ensinou-a a esperar. E ela gosta de ser boa aluna.

Tuesday, September 20, 2011

Intimidades II

'e se um dia, não amanhã nem depois de amanhã, eu acordar ao teu lado?'
'sim.'
'vais gostar de mim despenteada e mal humorada?'
'provavelmente não.'
'é a primeira coisa que vais dizer?'
'não.'
'então?'
'tostas ou cereais?'
'e mais?'
'na sala ou na cama?'
'e sabes o que vou responder?'
'despenteada e mal humorada vais dizer que não gostas de pequeno-almoço'
'provavelmente sim. mas, nessa altura, já o estás a preparar.'


a intimidade, vista de perto, é uma colecção de pequenas coisas que, separadas, são pedaços de nada mas juntas dão sentido às maiores.

Sunday, September 18, 2011

Amor à minha moda

1 dose de entrega
Dose e meia de querer receber
1 litro de paciência
Meio litro de fantasia
Meio litro de razão

1 quilograma de loucura
900 gramas de atrevimento

500 gramas de medo
2 beijos
1 abraço

Física e química qb
Sal e pimenta qb
Molho agridoce


Misturar primeiro a entrega e o querer receber num recipiente vazio. Adicionar, devagar, os outros ingredientes. Juntar, intercaladamente, a física e a química. Temperar com sal e pimenta conforme o gosto. Envolver com molho agridoce. Deixar marinar e verter para uma forma sorriso. Levar ao forno previamente aquecido numa temperatura altíssima. Não substituir o forno pelo microondas. Saber esperar. Retirar o preparado do forno antes de queimar. Provar em doses moderadas. Repetir se a vontade assim ditar. Deitar fora depois de arrefecer. Não esquentar.


P.S. O Amor tem prazo de validade. Esta receita também.


Wednesday, September 14, 2011

Trabalho de casa

E como se vive depois de ti?

Não me mostres a equação. Dá-me a senha e, por via das dúvidas, a contra-senha. A sina, a solução, a chave mestra, a fórmula sagrada. Oferece-me a fuga de ti. Aponta para a recta que não se cruza com o teu cheiro, afasta as estrelas, apaga a lua, mata o sol e espalha as cinzas num mar que desconheça a forma das tuas mãos. Permite-me não te querer mais. Mesmo que me queiras, ainda mais. Faz de conta que és rei e ordena que me expulsem do reino por desacato à autoridade. Que és tu, meu amor. Infringe todas as regras e atravessa a passadeira em hora de ponta. Obriga-me a pagar uma multa por excesso de ti. Segue os sentidos – certos – e obrigatórios e deixa-me ficar numa esplanada sem vista para ti. Ajuda-me a deitar ao lixo os desperdícios que por aqui sobraram entre os pequenos almoços e as madrugadas-lareira. Ensina-me o que desaprendi sobre os outros. Aqueles que nunca me interessaram. Traduz as palavras difíceis que não dependem de nós. Ajeita-me o cabelo e diz-me, olhos nos olhos, quem, depois de ti, pode entrar só porque sim. Dá-me uma bússola que aponte para o norte, e não para o teu chão. Conta-me a história dum primeiro beijo. Procura o meu coração e pede-lhe ao ouvido que volte para casa. Fala-me de tesouros no fundo da alma, segredos de cabeceira, cartas que chegam ao destino. Diz-me em que lugar escondo o nosso riso, a tua poesia e a minha prosa. O que faço à música? Onde tranco o silêncio de um abraço tatuagem. O que faço ao amor? Ao meu amor que, sem ti, virou vagabundo. Agora explica-me, por favor. Como se vive depois de ti?

Tuesday, September 13, 2011

Verdades II

‘E se nos cansarmos? não agora, um dia.
e se nos cansarmos de nós, um dia?’

‘e se nos vivermos?

(assim, se esse dia chegar,
é porque não há mais nós para viver)'

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Tuesday, August 30, 2011

Um bocadinho de quase tudo

‘amanhã à mesma hora, pode ser?’
‘sim.’

Os corpos entenderam-se primeiro. Ninguém pediu nada a ninguém. Era como se ele conhecesse a porta de entrada, e ela a abrisse sem precisar de ouvir a campainha. Sem pressas, nem vagares, ela deixou-o conquistar todos os territórios que, antes dele, foram deixados ao abandono. Pintou os quartos de azul céu e verde água, limpou o marco do correio, abriu as janelas e deitou fora o que restava da outra vida que, entretanto, tinha ficado órfã. Apaixonaram-se em silêncio. Só depois vieram as palavras. A medo. Porque ambos sabiam que as letras – quando se juntam - são mais mentirosas do que as mãos. Começaram por habituar-se aos sons das sílabas simples e só mais tarde, bem mais tarde, deixaram entrar em bicos de pés as conjugações quase perfeitas sobre o amor e a saudade. Quando não sabiam o que dizer, riam-se. E quando o riso acabava ela fazia-lhe cócegas e de novo tudo parecia fazer sentido. Ela tinha-se esquecido das coisas essenciais sobre os pequenos gestos. Ele, céptico convicto, ensinou-lhe o que sabia sobre esquecimento e novas descobertas. E, quase sem reparar, ela deixou-se levar naquela odisseia até ao fim do mundo que, estranhamente, parava sempre ali, naquele espaço interrompido onde as mãos dele agarravam as dela.

‘e se eu não quiser esperar por amanhã? e se quiser agora?’
‘pede, meu amor.’


Sunday, August 28, 2011

Adeus verão

Não me deixes adormecer assim. Mal aqui, quase ali, algures sem ti. Entre portas e janelas, abertas, cortinas ansiosas e uma mão cheia de esperança que gela ao mínimo sinal de alarme. Nesta estrada que virou atalho, mata serrada, colchão ao relento, casa abandonada. Não me deixes adormecer assim. Debaixo deste ar teimoso que emudece na tua ausência. Atrás de palavras, gigantes, que falam tudo e dizem muito pouco. Escondida nesta trepadeira de coisas por viver, contigo, ou só para viver. Não me deixes adormecer assim. Tira as teimas, as manias, as fobias. Larga as algemas. Deixa a vida lá fora, à espera, e vem mostrar-me o lugar onde nascem as estrelas cadentes. Quero uma janela com vista para nós, um sofá com pôr-do-sol, uma dança pé sobre pé. Muito riso, pouco juízo, mais sentido que razão. Quero deitar-me na areia molhada dos teus passos, estremecer sem ter frio, dar-te a mão no escuro quando o colo não basta. Quero roubar os tesouros perdidos do teu sorriso, mergulhar no teu abraço de olhos abertos, voar até à lua e adivinhar-te à distância. Quero bolas de neve, bailarinas de cristal, caixas de música e umas quantas histórias que mais ninguém conhece. Quero ler-te entrelinhas, esperar pelas reticências, esquecer pontos finais. Ouvir-te dizer ‘shiu’ enquanto uma qualquer lareira se acende entre o teu ombro e o meu pescoço. Quero esgotar a bilheteira, pedir exclusividade, passadeira vermelha e vestido rodado. Quero brincar ao faz de conta, tropeçar no teu navio pirata e avistar ao longe a tal ilha deserta onde o sol nunca se esconde. Não me deixes adormecer assim. Não assim. Se tiver mesmo de ser promete, com aquele jeito irresistivelmente acertado de prometer, que me encontras logo a seguir no meio dum sonho azul.


Wednesday, August 03, 2011

Intimidades

Não te afastes. Chega-te perto, bem perto, chega-te para mim e conta-me histórias de amor. Faz-nos personagens principais, dá-me cabelo loiro e a ti olhos azuis. Podemos ser mais novos ou mais velhos, o que quiseres. Desde que os meus lábios saibam encontrar os teus na bruma do bosque encantado. Chega-te mais, cala-me com um sorriso avelã, oferece-me um ou dois sonhos para brincar e aninha-me no teu colo. Deixa-me ficar, ficar só por ficar, ficar sem ter para onde ir porque é mesmo lá onde quero chegar, e ficar, sem pressa de ir embora. Desliga despertador, a lua se for preciso, entra comigo de mão dada nesta madrugada que foi feita para nós. Deseja-me dos pés à cabeça, enrola-me nos teus braços até a cama corar de desejo. Acorda vizinhos, pedintes, o mundo todo, chama a polícia e os bombeiros, és um perigo eminente e eu estou no epicentro da zona vermelha. Abafa-me a loucura, pede-me mais que eu dou-te tudo. Mostra-me surpresas no fundo do corredor. Tapa-me os olhos e a vergonha. Fecha a cortina que eu quero procurar-te nua entre a sala e o chão. Veste-me de branco com a língua e penteia-me o cabelo com os dedos da mão direita. Não me contes o fim. Traz chocolates, a tua manta preferida, uma estrela e uns quantos pirilampos. A vida começa aqui, meu amor, entre o longe do que fomos e o perto do que somos. Até já.

Sunday, July 24, 2011

Num destes dias

Se eu e tu fossemos mais do que modo condicional de amar seríamos um tango. Vermelho paixão rendido ao branco para sempre. Se acreditássemos em castelos sem areia, cavalos brancos ao fim da tarde, andorinhas num colo sem dono, janelas com vista para a lua, haveria sempre primavera ao virar da esquina. Se nos tentássemos ser mais dia, menos noite, nenhuma estrela precisaria de cair para o desejo virar promessa. E todas as madrugadas adormeceriam aninhadas entre o meu sorriso e o teu ombro. Se tu quisesses, e eu tivesse o sim na ponta do coração, o sofá poderia ser – nosso – chão, tecto e casa. Se o simples fosse mapa do tesouro, e vento apontasse para norte, seríamos poetas, trovadores, nómadas em terra de alguém. Seríamos faz de conta que afinal é verdade. Salteadores de palavras escondidas no fim do arco-íris. E saberíamos, quase sem hesitar, que é lá onde o ‘nós’ aguarda por resgate.

Tuesday, July 05, 2011

Sem encore

Não tenho mais nada para dizer. Ponto final,
quase,
parágrafo.
Muda de linha e de estilo, reinventa novos usos para os verbos cor-de-rosa. Faz de conta que não sabes nada sobre nada e aprende a juntar as sílabas de um primeiro beijo. Deixa que o frio na barriga tome conta de ti e te faça refém numa colmeia de borboletas. Evita exclamações, vírgulas e reticências. A vida é corrida, quer-se inteira, sorve-se num fôlego. Esquece-me. Risca tudo, vira a folha, deita fora o livro. Não alimentes boatos, não forjes segundos sentidos. A nossa história acabou e a cortina caiu. Não sobrou mais nada. Acabou. Não adianta insistir, bater palmas, pedir bis. Ninguém nos vai salvar com um encore. A música não renasce das cinzas, isso é uma tolice. Deixa que o silêncio leve de vez o nosso coração para um lugar recôndito onde ninguém perceba de amor. Respeita o tic-tac do relógio. Permite-te respirar outros cheiros além do meu. Vê mundo, vê gente. Apaixona-te. Desencanta-te. Volta a apaixonar-te. Não há nada de misterioso no gostar. Só há gostar. E cair em voo livre. Cair sem ter medo de cair. Porque a entrega é que dá ritmo à coisa, não o medo. Liberta-me. Rasga as cartas, os bilhetes, não te esqueças das memórias. Faz reset e delete para sempre. Não era suposto ser assim mas a vida é teimosa e não dá o que queremos. Só o que precisamos, quando precisamos. Não adies. É hoje, meu querido menino trovão, é já hoje que precisas de me sentir a ir embora. Neste instante nem são os meus dedos que agarras, são castelos na areia e uma onda está a aproximar-se. Devagar. Mergulha devagar no nada que aqui ficou. Eu prometo: amanhã o sol vai pegar-te ao colo, como eu nunca soube, e dizer-te ao ouvido aquelas coisas mágicas que não cabem no meu dicionário.

Monday, July 04, 2011

Saberes

Se calhar já sabíamos que ia ser assim. Um jogo do rato e do rato sem cronómetro, corrida contra a razão, o coração, contra nós. Um desespero de causa enamorado por um acaso. Um qualquer nada a desejar que tudo aconteça. Porque as coisas urgentes querem-se já, depressa, depois é tarde demais e é para os outros. Nós já sabíamos que ia ser assim. Nunca adormecemos em gaiolas, fizemos da brisa a nossa casa, fechamo-nos em castelos. Armamos barraca no alcatrão das madrugadas, usurpamos a lua e obrigamo-la cantar só para nós. Rimos das coisas sérias que nos contavam sobre o amor. Desacreditamos. É natural, por isso, que o sentido das coisas se tenha esquecido de nós. Ou que se tenha cansado de correr. Até os teimosos desistem quando deixa de haver estrada para andar. Há sentimentos assim: que vivem além dos corpos. Que insistem em ser gente além da gente. Que têm taras e manias, aparecem e desaparecem sem deixar rasto, sem deixar chão. Mas nós julgamo-nos superiores e quisemos-lhes sentir o cheiro, o gosto, o toque. Quisemos olhar nos olhos esses sentimentos demolidores que consomem espaços, lugares, pessoas. Quando eu teimava em querer-te perto tu fazias birra e viravas-te para o lado. Onde eu não estava. Eu desesperava e fingia que o mundo me interessava. Tolice. O meu mundo eras tu, até quando eu fugia numa estrela cadente. E quando finalmente me esquecia do cheiro do teu sorriso batias-me à porta com as mãos cheias de promessas. Lembras-te? Eu, que nunca gostei de intrusões, calava-te com um beijo de boa noite e mostrava-te o caminho do elevador ‘hoje não estou para ninguém’. E passavas a ser esse ninguém opaco que só estorva, uma mobília antiga que não se deita fora por vergonha. Tu ignoravas as minhas birras e esperavas. Insistias. Pedinchavas algumas migalhas de atenção enquanto ansiavas pelos meus dias de sol. E quando eles chegavam não havia paredes nem janelas e o verão entrava-nos porta adentro sem pedir licença. Nos raros momentos de lucidez chegaste a confessar, entre almofadas, que era a tua melhor metade. Eu ficava feliz até ao tecto sem o denunciar. Não sei se por medo ou por vergonha. Nunca nos entendemos nas palavras. Se calhar nem nos gestos. Olhando para trás, acho que nos amámos. Na altura dizíamos que era só um gostar passageiro. Como se o amor tivesse tempo para se passear de carruagem em carruagem à procura do melhor lugar. Como se fosse tão seguro de si. De cada vez que a nossa boca insistia em tal disparate as nossas mãos mentiam e mergulhavam para o abismo: o tal amor disfarçado de gostar muito. Mais que muito: demasiado. Gostar tudo o que havia para gostar. Esgotar a coisa de tanta vida. Usá-la muito. Abusar dela até ficar gasta. Como nós fizemos, meu amor.

Tuesday, June 21, 2011

Papagaio de papel

Tu não tens culpa. Não podias adivinhar que o meu coração era de papel. Nas entranhas do meu corpo de menina de aço morava um coração de papel. Mal tu sabias que era nele onde escrevia as cartas com letras desenhadas a tinta-da-china, diminutivos e nomes queridos, beijos selados num coração com as nossas iniciais. Não sabias porque nunca to disse. Nem as cartas foram enviadas para o destino que, na altura, julgava que eras tu. Não havia maneira de descobrires que o meu coração era de papel. Frágil e delicado. Titubeante na tua presença. Desassossegado na tua ausência. O meu coração era de papel e quando lhe falavas ao ouvido ele corava e pintava um arco-íris de uma ponta à outra. Ele tinha destas tolices e eu nunca soube pôr-lhe travão. Bastava sentir-te a passear nas redondezas e mascarava-se de noite estrelada. Não media os impulsos e, ao acordar, girava como um papagaio à volta do teu primeiro sorriso. Nunca o vi cansar-se de ti. Ao contrário, deliciava-se com os fragmentos da tua atenção que coleccionava religiosamente numa caixa de cristal que mais tarde procurei sem encontrar. Vivia por ti e para ti. À tardinha teimava em esperar-te, junto à porta, e não esmorecia quando lhe rasavas como um relâmpago. Gostava de ti apesar de todos os apesares que eram evidentes aos olhos de todos, menos aos dele. Era um romântico, um viajante enternecido na asa do teu abraço, um poeta, um alquimista de sonhos, um salteador dos tesouros perdidos no labirinto da tua alma. Tinha sempre coisas para te contar sobre almas gémeas, leis de atracção e campos magnéticos. Tu não ouvias. Preferias viver sem surpresas, dizias-me, e eu na altura não percebia, como agora, que falavas outra linguagem. Definitivamente não eras um sonhador. Não podias entender, jamais, que o meu coração era de papel. E quando foste embora o meu coração, que era de papel, rasgou-se. Nos primeiros dias continuou a acreditar no teu regresso. Desculpava-te, esperava-te e recusava-se a aceitar o mais trágico dos destinos: o nunca mais da tua presença. Passaram-se dias, semanas, alguns meses e tu, do alto das tuas certezas, não voltaste. A suspeita do fim fez-se verdade, nua e crua, e ele não aguentou o golpe. Rasgou-se em mil pedaços de saudade que foram desaparecendo sem deixar rasto. Não os condeno. Nem a ti, de resto. Não podemos cuidar do que não tem cura. Nem dar a mão ao que não pertence a lugar algum. E agora, que o verão chegou, recebi de presente um coração novo. Desta vez, posso jurar que é modelo único. Genuíno. Topo de gama diriam os entendidos da matéria. Nasceu de parto normal e tem tudo para singrar e, quem sabe, ser feliz. Não é devoto de nenhuma religião mas tem fé em qualquer coisa de bom. Acredita. Não se ilude com primeiras aparências. Emociona-se mas não escorrega no ridículo. Relativiza sem desvalorizar seja o que for. Apaixona-se. Desapaixona-se. E segue em frente. É alegre e inocente. Quando está bem-disposto socializa. É meigo. Às vezes recolhe-se, lambe os arranhões e volta para o jogo. Não faz grandes planos mas tem jeito para sonhar. E confessou-me esta madrugada que num dia destes vai plantar um jardim de amores perfeitos onde, garanto, não tens direito a entrar.

Friday, June 10, 2011

Quase verão

É uma espécie de transe. O tempo de espera entre o relâmpago e o barulho do trovão. O compasso entre o aviso e o acidente. O estar perto até ao bater de frente, desamparada, sem cinto de segurança. Quebrar. Gostar de ti é uma espécie de transe. Querer dormir e não ter sono. Rir até às lágrimas. Um arfar desgovernado, um coração a sincopar, um não ter pernas para correr. Um voo de abraços sem poiso certo, um procurar colo na multidão, um baloiçar para o vazio. Escorregar. Quase cair, rasar o chão. Uma âncora presa à alma, uma bóia furada, um navio ancorado numa ilha deserta. Milhas sem sopro de gente. Um haver só tu e mais nada. Ou mais nada interessar além desta tua presença baça e opaca a afastar tudo do caminho. Uma rua sem saída, um atalho para o abismo, um precipício ao virar da esquina. Não ter ar para respirar. Um não saber sequer o que se quer e querer, apenas, querer-te menos. Ou o menos possível. O suficiente para me sentir viva, longe de ti. Desejar-te até ficar sem forças. Gostar de ti é um universo de estrelas cadentes. Uma via láctea com planetas por descobrir, luas e sois em alvoroço, ausência de gravidade. Um andar de costas voltadas para o destino, um prometer que nunca mais se cai na tentação, um arrepender das promessas que não se cumprem. Porque o destino és tu, meu amor, minha tentação, meu pecado, minha sina, meu karma. Minha vida interrompida. Milagre que por um triz não aconteceu, bilhete vencedor de lotaria que me esqueci de comprar. Meu azar, gato preto, espelho quebrado, feitiço virado contra o feiticeiro. Gostar de ti não é só gostar. É mais ainda. É não gostar de mais nada, senão do que (não) me dás.

Saturday, May 28, 2011

Na terra do sempre

És um bruto. E eu sou uma princesa. Tu não sabes, nem sonhas, mas antes de adormecer ainda brinco com a primeira barbie e guardo uma tiara no guarda-jóias. Quase posso jurar que, à noite, é uma abóbora mágica que me leva até à porta de tua casa. Porque só ela sabe o caminho mais rápido para o teu abraço de lua cheia. És um bruto. E não te perdoo teres roubado o sapatinho de cristal dos meus dias azuis. Nem tão pouco me teres rasgado o vestido de tule naquele ímpeto de paixão urgente, que tantas vezes te tira a razão e o bom-senso. És um bruto sem modos e a tua camisa de marinheiro não condiz com o meu calcanhar de porcelana onde, num destes dias, vou marcar a ferros as nossas iniciais entrelaçadas. Tens um jeito trapalhão de andar, mais ainda de me rodar à volta do teu sorriso, que ora se disfarça de lobo mau, ora se esconde atrás do primeiro arbusto. És perigosamente seguro. Mais ainda naqueles instantes relâmpago em que ficas calado à espera que diga o que queres ouvir. Mal tu sabes o tanto que tenho para te dizer (e não digo). Tanto que se imaginasses fugias a sete pés deste labirinto onde nunca nos cansamos de brincar às escondidas. Gostamos demais das apanhadas fulminantes ao virar de esquina. Umas vezes sou eu quem te vê primeiro, e sem medo do escuro te agarro, nas outras és tu quem me assalta num fôlego audaz. És um bruto. E eu sou uma princesa que nada percebe de guerras ou invasões. Não te absolvo desta sentença sem juiz que te aprisionou, sem piedade, ao sol avermelhado das nossas tardes. Não te desculpo, sequer, os tropeções no furacão do meu cabelo ao vento, os desassossegos confidentes pousados no meu peito, as viagens nas asas do meu colo. E não ignoro, jamais, todas as palavras que sussurras ao meu ouvido quando julgas que estou a dormir. Guardo-as a todas, meu amor, no tal guarda-jóias da menina-princesa-mulher a quem saqueaste o coração.


Sunday, May 22, 2011

Não ter asas e saber voar

Não me deixes aproximar (mais). Afasta-te (de vez). Repele-me, esquece-me para sempre e, já agora, tranca o verbo amar no bolso das calças que não usas. Não te quero ver (mais) nem (tão pouco) sentir esse teu cheiro que me atrai e me irrita, me irrita ou me atrai e que, no fim do dia, só me irrita. Não envies sinais de fogo nem acendas fogueiras que não consegues apagar. Deixa-me (de vez). Pendura-me num papagaio e lança-me pelo ar. Eu sei que o vento vai levar-me numa valsa pelas noites de verão. Como tu fazias quando eu amuava e acreditava que o mundo tinha acabado para nós. Impede-me de tropeçar nas fotos felizes e nas cartas encantadas, faz (mais) um esforço e dá-me (outra vez) a mão senão é desta que caio na armadilha do teu sorriso. Bem sabemos que nele se vivem dias sem descanso. És um pecado mortal, uma gula teimosa, um mal-me-quer disfarçado de girassol. E eu, que fui bailarina na palma da tua mão, cansei-me de (tanto) rodar. Enjoei este vício de ti. E queria ter náuseas e tonturas, dizer maledicências, lançar-te um feitiço (talvez). Não consigo fazer mais nada senão desatar (aos poucos) o nó do laço que prende a minha saia ao teu colarinho. E juro-te, meu (quase) querido ex amor, que numa destas manhãs será apenas a saia que encontrarás no fundo da cama.

Wednesday, May 18, 2011

Fogo, cinza e nada

Se as saudades falassem chamavam por ti. E calavam o riso, a primavera, o silêncio, se fosse preciso, para só o teu nome ser ouvido. Até naqueles lugares recônditos onde o céu empurra a terra sem ninguém ver. Tu não sabes mas, hoje, as saudades pegam-se aos dedos como chocolate quente, desfazem-se em pedaços lacrimejantes e queimam. Tento limpá-las, escondê-las, arrumá-las para longe mas elas regressam, galopantes, agora em forma de cinzas. Tomam conta de todos os lugares onde só eu tenho senha de acesso. Invadem sem permissão os esconderijos do corpo e da alma, fazem ninho e teia, fazem cama. Não descansam. Primeiro entranham-se nas coisas, depois em mim, como um manto de pecado vermelho que me deixa nua e menina neste chão vazio onde, numa daquelas noites, fomos um só. Eu resisto, digo para irem embora, imploro e quase choro mas elas teimam em ficar, ao meu lado, como espectadoras de último episódio. Se as saudades falassem chamavam por ti. E diziam-te ao ouvido, meu amor, o que ficou esquecido no abraço que ficou por dar, no beijo que não chegou a ser roubado, na alvorada que acordou sem nós. Hoje não as censuro e deixo-as falar. Pode ser que assim, num dia que não o de hoje, elas esgotem as palavras até não sobrar mais nada.

Nem história para contar. Ponto.

Wednesday, May 11, 2011

Desta vez é para ti

(Afinal) Não és destino. Não és, garanto. És terminal de aeroporto. Tanto quanto sei, és o maior de todos. Pólo de atracção, esfera de influências, gatilho de oportunidades. És o estar a chegar e o quase a partir. Ponto de passagem. Conforto imediato do café que se toma de pé, revista com janela para o mundo, máquina descartável sem modo automático. Vendilhão de fantasias, confidente de promessas, altar de despedidas, albergue de afectos. Vês quem chega e quem se vai embora, por um momento ou para sempre, sem verter uma lágrima. Não te perturbas, não te aproximas, não te incomodas. Tão pouco te alimentas desta matéria agridoce de que são feitos os sonhos. Com a mesma leviandade conquistas quem entra como quem sai, sem nunca revelar o verdadeiro rosto do teu beijo. Não distingues cheiros nem cores, não sabes que a alegria se cola aos dedos como chocolate e que a tristeza queima a língua e a alma. Nos tempos livres jogas à sueca, baralhas e voltas a dar, e na jogada seguinte é dia e pouco do que era te interessa. Ninguém sabe se sofres em silêncio, se cantas no chuveiro ou se tens medo de trovoada. Estás presente além das horas. Mas, às vezes, elas passam-te a perna e a seguir és passado, memória, bilhete no baú das coisas que não voltam mais. És refém de um tempo que não é teu, mas de quem passa e nem se digna em dizer ‘tchau’. És o maior terminal de aeroporto que conheço. E o teu coração ficou esquecido, sem dono, num cacifo cinzento dos perdidos e achados. Estar contigo nem é estar, perdão, é ficar. Ficar por uns minutos, esperar sem adormecer, ficar sem nunca perder de vista o essencial: a hora de embarque para qualquer coisa de bom entre o céu e a terra.

Wednesday, May 04, 2011

Um dia de verão

Tu sais disparado e eu sigo-te num fôlego. ‘Se correres eu corro, meu amor’. À nossa frente temos um campo de girassóis que a todos serve de quadro e a nós de tapete. Hesito, sei lá se te consigo acompanhar ou se o meu coração se perde pelo caminho. Tu adivinhas-me - como sempre - e entrelaças a tua mão na minha. ‘Onde estiveres eu estou, meu amor’. E naquele instante eu percebo que nada mais importa senão isto: as nossas mãos dadas neste tapete de girassóis. Lá atrás, ao fundo, repousa a cidade abandonada sem dó nem saudade. O dia está só a começar. E é um dia de verão.


Tuesday, April 12, 2011

Nada (que é nosso) se perde

Pediste ao mundo para fazer um minuto de silêncio e ele, sem estar habituado a tais desígnios, obedeceu-te. Os oceanos fundiram num só, os montes viraram caminho, os abismos adormeceram nos vales e há quem jure ter visto o céu a mergulhar em queda livre numa ilha deserta. Pararam as valsas, as poesias, os dramas e as sinfonias. Perdeu-se o rasto da tristeza, da melancolia, da saudade e da alegria. Todas as coisas se fecharam em vácuo e só o eco do nosso abraço se fez presente no momento em que paraste todos os relógios. Pediste ao mundo para fazer um minuto de silêncio e eu não te fiz esperar mais. ‘amo-te’ disse, primeiro devagar e a medo, depois mais depressa e a sorrir. ‘amo-te’ outra vez. Uma letra a seguir à outra, todas as letras numa só, a fonética e a semântica de mão dada, como nós. ‘amo-te’ além do tempo, roubado, ‘amo-te’ daqui até à lua (onde sabemos que há um lugar só nosso que não conhece coisas impossíveis). No minuto seguinte, sem ninguém reparar, seguimos viagem no teu cavalo branco.

E não olhamos para trás.

Friday, April 08, 2011

A fuga

O meu coração perdeu a fé e sem avisar ninguém fugiu para parte incerta. Despiu o fato vermelho de gala e cobriu-se num manto quase roxo. Fez luto de si. Renegou o mimo entre os lençóis de seda e a boa-noite sussurrada ao ouvido. Desafiou as leis da química, ignorou de vez a anatomia do desejo. Divorciou-se das aurículas, dos ventrículos e das válvulas. Não chorou nem se lembrou de avisar os amigos. O meu coração adormeceu menino e acordou homem altivo e orgulhoso. Atirou a aliança à primeira onda que encontrou e não se arrependeu. Desencantou-se. Esfumou-se na brisa, nas gotas de orvalho, na chuva que ameaça e não cai, no voo picado da andorinha que abandonou o bando. Desapareceu. Fechou as portas ao negócio e deixou um aviso para os mais cépticos a dizer ‘trespassa-se’. Não se dignou em deixar uma carta, um bilhete, uma chave no vizinho da frente. Não se lamentou de nada, nem se despediu dos afectos que viu crescer. Enterrou a saudade no quintal e fez uma fogueira de memórias. Vendeu o passado. Fechou as mãos dadas num baú enferrujado que fez questão de esquecer no quarto dos fundos. Cortou o cabelo e a esperança pela raiz. Deixou em terra os beatos e os lambe-botas, livrou-se dos sanguessugas, sacudiu do casaco os ateus, piscou o olho aos sonhadores. O meu coração fugiu para parte incerta e, apesar das juras de amor para sempre, não me levou com ele.

Wednesday, March 23, 2011

Coisas que acontecem

O que acontece é que te vi antes de te conhecer. Estava à tua espera como quem espera a primavera depois de um longo inverno. Como um turista que espera o comboio que o leva de volta a casa, ou ao tal destino de sonho, tanto faz. Nunca percebi a diferença entre os encontros e as despedidas. Já dizia o poeta que chegar e partir são só dois lados da mesma viagem, se calhar são mesmo e o mais importante é o compasso entre ambos. Pressenti-te quando existias apenas no horizonte, quando eras caleidoscópio e tinhas os formatos e as cores que eu quisesse. E enquanto a cidade via árvores, ruas, bancos de jardim e passeios, eu via-te a ti. Não te sabia os traços do rosto nem o formato das rugas, mas via-te. Às vezes via-te tão perto, mas tão perto, que a claridade do teu sorriso quase me cegava e se confundia com os primeiros raios de sol. Não errei. Antes de te conhecer já estavas em todo o lado, até nos lugares silenciosos e secretos onde não cabe mais nada senão a memória dos fantasmas de um passado que fingimos desconhecer. Amei-te, talvez, amei-te sem saber ao certo o que era o amor (ou o que lhe quiseres chamar). Amei-te sem ter mão nesta coisa insana que corre mais rápido do que as pernas, a esta ferida aberta e sem cura, a esta urgência de viver além das horas porque o amor, quando chega, vem por tempo indeterminado. Até ao dia que acaba, também, por tempo indeterminado. Sabes a que sabe a tua ausência, amor? A falta de ar. A tua ausência, amor, é uma corda ao pescoço. Um ar rarefeito ou quase nulo. A tua ausência é vazio e vácuo e nenhuma história para contar. A tua ausência é um carrasco que mata aos bocadinhos, um castigo sem fim à vista, uma tortura, uma penitência de silêncio. A tua ausência entra-me pelo corpo adentro como uma labareda incandescente que tatua o teu nome em todos os pedacinhos por onde passa. Como se eu fosse capaz de esquecê-lo. Como se conseguisse, sequer, esquecer as letras que são mais do que o teu nome. Para que saibas: essas letras, que te dão nome de carne e osso, são mais do que isso. Essas letras, juntas, são o meu grito de saudade que ecoa por este mundo que ficou órfão de nós.

Sunday, March 20, 2011

Sem bússola

Eu sou norte, tu apontas para sul. Às vezes os astros conspiram e tropeçamos um no outro na terra que não conhece rosa-dos-ventos. Eu brinco com a semântica, tu desconfias das palavras que não sabes pronunciar. Falas devagar, descansas no silêncio das entrelinhas, ris de quem se julga dono da razão. Eu gosto de dizer disparates. Tu gostas tanto de disparates como de mim. Ou mais de mim, não sei e não faz mal. Tu és avesso a perguntas, eu evito as coisas banais. Eu sou menina disfarçada de mulher. Tu és o homem que me segura pela mão e me deixa ser quem eu quiser. Contigo sou estrela e céu azul. Sou sol de verão. Sou o que se vê deste lado da janela, sou também o parapeito onde te pousas e descansas. Contigo não há amarras, nem prisões, nem quartos trancados no fundo do corredor. Não há ‘talvez um dia, quem sabe’. Não há medos. Há urgências e coisas que fazem sentido. Há o sim vestido de juíz e o arco-íris que sai à rua sem chuva. Contigo não há tempo a perder, só dias para viver e noites sem almofada. Tu és as reticências que esperam pacientemente pelo meu ponto final. Eu sou prosa, tu poesia. Juntos fazemos magia e eu sei que, um dia, seremos história de encantar. Somos salteadores de sonhos. Brincamos com o sexto sentido e fazemos castelos na areia. Não temos vergonha. Eu sou daqui, tu não és de lado nenhum. E aos domingos fazemos planos para ter uma casa na lua. Eu sou fogo e tu fluis como a água. E quando escorregas, amor, é a minha mão que te leva de regresso a casa. Tenho a certeza: nós os dois somos mais que dois. Somos três, quatro, cinco, se calhar somos o mundo inteiro à nossa volta. Há dias em que somos um beijo mais que perfeito. Doutra coisa tenho a certeza: enquanto houver ‘eu’ e ‘tu’ o verbo amar nunca mais se sentirá sozinho.

Saturday, February 19, 2011

O que tiver de ser

Eles que estranhem e se enganem. Que desacreditem até. Nós sabemos que o amor é simples e acontece de repente. E o amor fica-nos bem. Eles que atirem pedras para o mar e nadem contra as ondas. Nós sabemos que o pôr-do-sol é um encontro a dois que nunca espera nem se atrasa. Eles que rebolem na areia e desfaçam castelos. Enquanto isso, tu és príncipe e fazes de mim tua princesa no conto de fadas que é só nosso e não está escrito em lugar algum. Eles que finjam e mintam e se atropelem no mais ou menos. Nós dizemos verdade e até a etimologia nos perdoa por não sabermos tudo sobre o verbo gostar. Eles que se abandonem e se percam no labirinto do que não pode ou deve ser. Nós somos o porque sim. E enquanto assim for, meu amor, haverá sempre primavera ao virar da esquina. E eles nem desconfiam.

Tuesday, February 15, 2011

Coisas daqui

O mundo lá fora que diga coisas absurdas. Eu faço ouvidos moucos e aninho-me no teu colo de algodão doce. E entre a curva do meu nariz e a cicatriz do teu joelho o silêncio perde-se em riso e o riso faz-nos bem. O mundo lá fora que continue a girar. Tu fazes troça, viras-me do avesso e convidas-me a passear na tal avenida onde podemos ser turistas sem que ninguém desconfie. Na mesma avenida onde, de noite, a nossa felicidade não é sonora mas faz parar o trânsito. O mundo lá fora que nos chame à razão. Nós fazemos caretas e damos lambarices às palavras. Pedimos ao sim para se mascarar de não, e apresentamos o de vez em quando ao sempre. Já de manhãzinha prometem cuidar-se até que a semântica os separe. O mundo lá fora que aconteça. Muito pouco ou nada mais importa senão esta coisa nossa que não cabe em lugar algum, mas sabe sempre o caminho de regresso a casa.

Thursday, February 10, 2011

Sem direito de resposta

Devolve o que roubaste. Ouviste bem: devolve tudo o que me roubaste. Desta vez não estou a brincar. Nunca fui de deixar as coisas pela metade, por isso nem com as sobras podes ficar. Quero que me devolvas tudo. Devolve-me o sorriso, deixa-o correr para o meu colo e pousar-se na minha boca como algodão doce. Deixa-o lambuzar-se nas minhas bochechas até ficarem coradas de mimo. O meu sorriso não te conta, mas está farto de viver esquecido no fundo do teu bolso como um bilhete de lotaria que não foi premiado. Queixa-se de abandono e eu quero-o de volta, quero-o no único lugar onde fica bem: entre o meu nariz e o meu queixo. Devolve-me as palavras que te disse ao ouvido. Devolve-as. Não faz sentido viverem suspensas no teu silêncio que nada percebe de metáforas. Devolve-me as músicas que te dediquei. Também aquelas que te cantaram sobre nós. Coloca-as nos cds vazios que deixei em tua casa e envia-as pelo correio para a terra do nunca. O mundo que guardo nas mãos está cansado das tuas músicas com ares de noites estreladas. E eu não gosto de contar estrelas. Devolve-me a magia das minhas histórias. Se não percebes, nem te encantas, devolve-me a magia. Devolve-me os príncipes e as princesas, não te esqueças das fadas nem dos duendes. Devolve-os a todos. Devolve-os que eles aguardam por um final feliz que só eu, sem ti, lhes posso dar. Devolve-me os gestos de carinho. E os outros, também, os de paixão e os de quase-amor-se-tu-tivesses-querido. Embrulha-os em veludo vermelho e deixa-os no parapeito da janela, à sombra para não azedarem. Quando não estiveres por casa eu vou buscá-los. Prometo que nem darás conta e os teus braços poderão finalmente libertar-se do peso das coisas felizes. Já agora, se não te causar transtorno, devolve-me o meu coração. Ele diz, com razão, que não o acarinhas como dantes e que afinal o novo lugar aonde o escondeste é frio e escuro. Tem medo desse teu peito mudo, despojado e sem morada fixa. Devolve-o agora. Devolve-o depressa antes que seja tarde demais. Antes que morra de medo e de desamor. Devolve-o ainda hoje. Está mais que decidido: vou levá-lo, pela mão, para bem longe deste deserto árido que te serve de albergue.

Thursday, February 03, 2011

Que dia é hoje?

Na maior parte dos dias não gosto de ti. São os dias de copo meio vazio. Dias lúcidos de decisões certeiras, de coisas que fazem sentido, de caminhos que se orientam para norte. São dias serenos onde até o mar ajuda e se deixa embalar pelo horizonte. Dias em que o sol aquece o rosto e a alma e antes de ir embora não se esquece de dizer adeus. Na maior parte dos dias não gosto nada de ti. Vives à sombra do meu sorriso e nem o meu olhar se desvia quando me acotovelas à procura de atenção. Passas-me ao lado sem que o teu cheiro me tire o fôlego e o sono. Vivo apesar da tua existência teimar em ser gente de carne e osso. Vivo além de ti. São dias em que os meus passos se movem seguros e deixam marca no asfalto. Dias em que a razão vence a emoção sem braço de ferro, porque a vida sem ti não precisa de jogos para nada. Depois há os outros dias. Os dias de copo meio cheio. A transbordar de ti. São dias em que te amo tanto, mas tanto, que quase te odeio. Odeio-me a mim, também. Dias de sufoco, de ar irrespirável, de estufa trancada, de atalho que só pára no abismo do teu umbigo. Dias sem manhãs, sem tardes, sem mais nada além da tua presença absoluta em todos os lugares por onde passo. Não te consigo fugir. Não te resisto. Quero correr e não posso, tenho as mãos algemadas às tuas e ninguém sabe aonde está a chave. Não sei se choro, ou se rio. Não sei, sequer, sair do teu abraço. São dias em que, se calhar, te amo a sério. Isto se um amor assim, desmesurado e desregulado, conseguir ser sério, ou se ele quiser saber da seriedade para alguma coisa. São dias em que te amo. Muito. Dias em que o meu corpo não responde a mais nada senão ao assobio do teu cabelo a roçar nos meus ombros. São dias em que os meus pés não obedecem ao bom senso e te convidam para dançar no meio da rua. E tu aceitas. Dias que não são dias, são noites. E noites onde nem a lua se atreve a sair à rua com medo de te encontrar num beco sem saída. Noites que não passam, não descansam e se alimentam do desassossego dos nossos beijos clandestinos. Vivo para ti e, às vezes, nestes dias que são noites tu vives para mim. Até chegarem os dias em que não gosto de ti.


Thursday, January 27, 2011

Pode ser já amanhã

Um dia destes rapto-te. Mas descansa, envio-te um aviso. Uma carta perfumada escrita à mão a dizer todas as coisas que sempre quis dizer e tu não deixaste. Sossega, vá lá, não vais ler nada que não saibas. Deixemos de lado as banalidades que nos maçam, os atropelos dos segundos sentidos que nos confundem, os olhares vazios que não combinam connosco. Deixemos para trás o que não podia ser, o que não chegou a acontecer, o que era e não foi. Deixemos de lado as pausas, os intervalos, paremos de vez com estes abraços tardios e com data de validade. Vamos ser felizes. Só isso: felizes. Vamos fintar esta coisa maldita que se veste de destino, vamos fugir para um sítio remoto onde ele não chega, nem tão-pouco tem aonde dormir. Vamos fazer as coisas impossíveis que sempre nos prometemos mas nunca nos autorizamos. Vamos dormir ao relento, olhar a lua nos olhos e sorrir quando ela se põe cheia só para nós, vamos cheirar margaridas até nos impregnarmos de primavera, vamos fazer uma corrida até ao horizonte (e voltar). Um dia destes rapto-te, meu amor. Mas seja lá para onde formos, eu prometo, vamos de mãos dadas.

Monday, January 24, 2011

Não é pecado

Desta vez peço-te que mintas. Não estranhes, não desobedeças, faz apenas o que te digo. Mente-me com todos os dentes, por favor, mente-me depressa senão desconfio que me escangalho em partículas de mimo por causa desse olhar que só diz verdades. É que ele não faz por menos e atira um ‘amo-te’ logo pela manhã, mal acorda e me vê indefesa e entalada nos lençóis que ontem eram meus e hoje acordaram nossos. O teu olhar devia ter uma máscara de Carnaval ou de Halloween, tanto faz, desde que esconda o descaramento que me faz corar da cabeça aos pés. Se não arranjares uma máscara põe-lhe ao menos uma venda, ou qualquer coisa opaca, que tape o brilho do meu sorriso que entretanto desaprendeu a viver sozinho. Mente-me, por favor, diz outras coisas além destas parvoíces que só me lembram dias de primavera e noites de lua cheia. Já agora, pede às tuas mãos que tenham modos. Ou modo pausa, se fores capaz. É que a sofreguidão com que procuram as minhas tem feito danos irreparáveis, coisa de urgência hospitalar. Os sintomas são os piores: palpitações, tremuras, euforia, alguma tolice. O médico teima em dizer que a doença dá pelo nome de ‘paixão’ e que, caso eu não repouse, pode evoluir para um estado mais crítico chamado de ‘amor’. Por isso peço-te que mintas. Não é por mim, meu amor, mas tenho medo que o meu corpo vacile. Se não conseguires – mentir – ao menos esforça-te por ficar ao meu lado neste delírio sem fim à vista. Se prometeres, e me abraçares com força, eu sossego o médico e digo que encontrei a cura.

Wednesday, January 19, 2011

Fatalidades

Então és mais velho que eu. Para falar verdade, isso não me importa muito. Importa-me mais o atrevimento das tuas mãos, o nariz arrebitado e, definitivamente, o jeito do teu cabelo quando se zanga com o pente. Não importa que me trates como uma miúda, a sério que não, viro costas ao paternalismo e saio à rua de saltos, cigarro em riste e saia travada. Tão-pouco importa que o meu riso estridente te embarace e que só atravesses a rua na passadeira. Um dia destes tiro algum tempo e explico-te que as ruas desertas podem ser atravessadas em qualquer lugar. E se estivermos de mãos-dadas nada de mal pode acontecer. Não importa que me tires o sono, o chão, a fala e a fome. Eu sobrevivo, não faz mal, eu sobrevivo se prometeres que um dia podemos ficar juntos em qualquer lugar que não aqui, onde todas os caminhos dão a um beco sem saída. A este beco onde tu não estás. Não importa o teu mau gosto com as camisas e os fatos escondidos no armário. Importa-me mais esse jeito de homem. Eu sei lá o que é isso, sempre tive queda para miúdos, tontos e desmiolados, que brincam ao faz de conta e desaparecem sem deixar rasto (antes assim, nunca fui boa a dizer adeus). Ouviste bem, importa-me mais esse jeito de homem que sabe tudo, que caminha sem pressa, que segura a vida como tem de ser: pelo pulso. Importa-me, acima de tudo, este quase gostar muito de ti. Este quase gostar muito que, afinal, é mais que muito: é demasiado. Um demasiado que mete medo. E isto é tão grave como faltar o ar. Se, de repente, o mundo ficasse sem oxigénio a consequente catástrofe não causaria tanta mossa como este quase gostar muito que, para que saibas, às vezes não é quase, é gostar muito de ti,

meu amor.

Thursday, January 13, 2011

O dia antes da Primavera

Não me peças para acreditar noutra verdade (que não esta):
o coração foi feito para ser quebrado.

Não vale a pena tapares o sol com a peneira, que é como quem diz: escusas de fingir que tens queda para príncipe. Não vale a pena, o fato fica-te ridículo. As calças são pequenas para o tamanho dos teus passos, desobedientes, e a casaco não segura nem metade do teu atrevimento. Despe-o, já. Desfaz-te dele. Queima-o. E desvia-te do meu caminho. Deixa-me olhar o sol de frente, por favor. Que se lixem problemas de pele e de retina. Dá-me tempo e espaço, dá-me coisas para ter medo. Não te esforces em proteger-me dos demónios que me atormentam na escuridão da tua ausência. O demónio és tu, não vês? E o veneno que destilas ainda perdura no pedaço de mundo que repousa no meu colo. Se nunca percebi de física nem de química, por que raio os meus pés insistem em fazer ninho nas tuas pegadas? Não percebes que quero caminhar sozinha? Deixa-me descobrir novos trilhos, experimentar atalhos, correr até ficar sem fôlego. Deixa-me perder em lugares além do teu campo magnético. Deixa-me cair, se for o caso. Se me tornei exímia no equilíbrio da corda bamba das tuas indas e vindas, não será desta que a gravidade me trai. Não te socorras da partilha. Eu lembro-te o significado: dividir em várias partes, possuir com os outros, participar, ter em comum. Não ouses, sequer, falar em partilha. Se em tempos fiz ouvidos moucos às tuas palavras loucas, agora, basta. É a realidade que me puxa para diante com a força de mil dragões. Não rias: é coisa séria e o prognóstico reservado. Preciso de dar descanso ao meu pobre coração, o médico recomendou repouso absoluto de ti. Deixaste-o entregue ao abandono. E entre a fome a sede ele acabou por quebrar. Não te preocupes com os cacos, querido, dizem os entendidos que em terreno fértil nasce sempre uma flor mais bonita. Deixa-me. É que, sem ti, todos os caminhos vão dar à Primavera.

Monday, January 10, 2011

Ódio de estimação (disse ódio?)

o problema não és tu. o problema é o teu cabelo. é isso mesmo. o teu cabelo preto quase liso, quase meu. o teu cabelo de corvo solitário, de deus pagão, de ateu. o problema é o teu cabelo perfeito. chamariz de infortúnios, vendilhão de promessas por cumprir. o teu cabelo é o culpado da dor de cabeça monstra que carrego junto ao peito, como uma cruz, é o culpado da falta de ar, dos achaques em plena luz do dia. o teu cabelo enfeitiçou-me, tenho quase a certeza. às vezes, tu não reparas, prega-me sustos de morte e nem avisa. atira-me contra um poste de alta tensão e fica a rir-se da minha dor, como um louco, enquanto a electricidade me abre em chagas e carne viva. terminado o festival pirotécnico, e sem que ele me ajude, deixo-me ficar no chão, queimada e desnorteada, ansiosa para que os segundos passem rápido e a luz ao fundo do túnel não tenha perdido o comboio. qualquer lugar é melhor, mais seguro quero eu dizer, que este lugar por onde se passeia o teu cabelo. perdoa-me. mas ele mata-me. o teu cabelo preto, que à noite se pinta de vermelho-sangue-suga, mata-me. gosto tanto dele que até dói. gosto dele todos os dias, incluindo as manhãs em que não está por perto e o odeio. é lindo o preto do teu cabelo. por um triz não é meu. e as minhas mãos bem queriam que fosse. lutaram, esbracejaram, suspiraram, fizeram trinta por uma linha. nada. o teu cabelo fez-se de importante e pediu para ser deixado a sós nos seus aposentos.

não te aflijas, meu amor,
não estou zangada.

o problema não és tu.
o problema é só o teu cabelo.

Thursday, January 06, 2011

Não é mentira

passeias-te ao meu lado como um susto. nunca tive soluços, mas estremeço só de sentir esse teu aroma agridoce que às segundas se mascara de barba por fazer e às sextas se veste de preto integral. és louco e perigoso, e quando queres és lindo e irresistível. e eu, que tenho medo de alturas, brinco à cabra cega no limbo que separa a vertigem do teu sorriso e o abismo do teu olhar. um dia destes vou tombar de tanto desejo. se calhar nem é desejo, é o intervalo entre o muito bom e o péssimo. qualquer coisa séptica entre a paixão e o ódio. um sentimento-tormento que está ainda por inventar, por traduzir, quem lá andou sabe do que falo. e não sabe, sente o que falo. sente o coração a latejar de pânico, desesperado e a gritar socorro ‘alguém me acuda que desta não me safo’. na maior parte das vezes tem razão, há uma emergência: a casa está a arder, e o coração morre queimado.

tenho quase a certeza que me vais esborrachar contra a parede com essa tua mania irritante de me olhar de cima para baixo. eu sei lá o que é isso. só sei que nem de gaiolas gosto, mas vejo-me a contar os minutos para as seis da tarde, a hora do encontro marcado com o teu sobrolho levantado junto à porta do elevador. ‘tu primeiro’. caramba e esse vício de seres politicamente correcto, cavalheiro que engana-tolas (ou todas), por um triz não me atira abaixo dos tacões. componho-me e agradeço, sem tu ouvires digo aos anjos para irem a correr avisar o senhor do condomínio que a máquina sobe-e-desce tem de parar neste instante entre o primeiro andar e o rés-do-chão, se faz o favor. eu nunca dei muito trabalho é só um favor, juro que não peço mais nada, até faço um sacrifício qualquer, um daqueles penosos, muito difíceis ou quase impossíveis.

eu prometo: se me concederem 5 minutos de tempo interrompido contigo – meu amor – eu penso seriamente em te esquecer.

prometo.

nem que ande a vida inteira a cumprir a promessa.

Monday, January 03, 2011

Aqui

não ligues ao mundo lá fora. perde-te um pouco mais nas horas e nos abraços e fica comigo até o sol nascer. desconfio que o inverno ainda não foi embora, por isso, deixa-te ficar na manta-sofá enquanto te conto mais uma história de embalar. puxa-te para os meus sonhos e dá-me a mão se tiveres medo de cair. eu agarro-te, sempre. contorna os meus lábios com o teu dedo indicador, desenha neles um coração ou uma estrela, e diz-me que o mimo tem sabor a biscoitos de canela. como aqueles que te fiz ontem à noite. segreda-me ao ouvido um cliché qualquer, eu prometo que o enrosco no meu beijo e o levo a dar uma volta pelo corredor. está frio, não ligues ao mundo lá fora. guarda o sobretudo no armário e fala baixinho para não acordares o silêncio que adormeceu ao nosso lado. soletra palavras longas e difíceis e deixa-me dançar sem música em cima dos teus pés. faz-me girar nos teus braços como uma bailarina, se quiseres eu visto aquela saia de tule rosa e calço as sabrinas que me deste de presente. não te envergonhes se disser, quase a sorrir, que te adoro daqui até à lua e da lua até a este quarto lilás. é que tu não sabes, mas o amor vive destas coisas perfeitas, tão perfeitas que roçam o ridículo.

(não o procures lá fora).