Friday, December 31, 2010

Vida nova

vai-te lá embora. vai duma vez e não te atrevas a voltar para trás. peço-te: não voltes para trás, nem se te esqueceres da carteira. vai-te embora e esvazia os bolsos de qualquer réstia de esperança. a verdade é só uma: gastámos o tempo de antena que nos foi permitido. não há programa ou concurso que nos valha, a nossa história secreta fica fechada e selada entre quatro paredes duma casa que, de resto, nunca foi nossa. vamos então sair de fininho desta vida antes que alguém se magoe a sério. e enfrentemos os factos: vivemos o que tínhamos a viver, enquanto quisemos, enquanto fez sentido. no fundo nunca acreditámos que podíamos ser uma feliz coincidência, daquelas que só acontecem nos filmes que esgotam bilheteiras. desconfiámos dos acasos que volta e meia nos atiravam para o colo um do outro. de início tentámos ignorá-los, escondê-los debaixo do tapete. longe da vista, do faro e do coração. de repente mais um acaso, vindo sabe-se lá de onde, e novamente nos víamos a rodopiar numa dança sem fim à vista. até ficarmos zonzos e cairmos. mascarámo-nos de estátuas, desacreditámos as urgências dos nossos corpos, pusemos de castigo os gemidos, fechámos os beijos num lugar recôndito abaixo da mesosfera. e quando sentimos medo – de nos perdermos nas evidências da coisa – recuámos. terra firme e pés assentes no chão, já que andar na lua é coisa para tontos. recuámos tantas vezes que lhes perdi a conta. recuámos até não haver mais espaço para a fuga. a verdade também é esta: a cumplicidade assusta e olha-nos nos olhos. e, às vezes, a vida é mais fácil se desviarmos o olhar na hora certa. vai-te lá embora. vai duma vez. não me faças quebrar a nossa promessa. lembras-te? a promessa de deixarmos apenas o silêncio tomar conta dos lugares onde fomos felizes. já dissemos tudo o que havia a dizer, desconfio que inventámos umas quantas palavras e cansámos tantas outras do uso que lhes demos. merecemos tréguas. andámos tempo demais a pregar partidas ao destino. zombámos da altivez, da frieza das palavras certeiras, da eloquência dos gestos. deixámo-lo ferido, desfigurado e abandonado numa sarjeta qualquer. permitimos que perdesse a memória, a inevitabilidade e a razão de ser. permitimos que se esquecesse de nós. não vale a pena o espanto nem as quase-lágrimas. matámos esta coisa estranha e perfeita antes que ganhasse contorno de vida real. e agora é essa vida, real, que nos empurra para a frente com a força de um tornado. cada um na sua direcção, como tem de ser. deixemo-nos levar, por favor.

desta vez, sem medo.

Monday, December 27, 2010

Faz de conta

podes fingir, eu não me importo. adoro brincar ao faz de conta, nunca te disse? finge que gostas de mim, juro que não me importo. finge que toleras o mimo desmesurado, as zangas e birras arremessadas sem aviso prévio. finge que suportas a ironia mordaz, a voz quase-rouca, a blusa transparente e a saia travada sem espaço para rodeios. perdoa-me e distrai-me com uma história de encantar. qualquer uma. guarda para ti o ‘viveram felizes para sempre’, não aprecio vaticínios. finge que desejas o meu corpo, finge que o embalo da minha anca te confunde e conduz à perdição. finge que descobriste algures, entre o meu pescoço e o teu umbigo, a essência da felicidade ou de qualquer coisa que está ainda por inventar. já agora, vê se calas a gargalhada das minhas mãos entrelaçadas nas tuas (não é por mim, nem por ti, mas os vizinhos não dormem há dois dias). finge que gostas de mim e que tens planos para o futuro. finge que o ‘nós’ combina comigo, contigo e connosco. comprei a tal viagem de sonho a Veneza, sem querer pressionar deixo a provocação: tem validade de um ano. não te arrelies, sempre tive queda para dramas e compras impulsivas. pega no compasso dos meus passos e compõe um tango para dançarmos numa noite destas. diz alto e bom som que o vermelho fica-me a matar e que o laço do meu vestido combina com o teu cachecol. esquece por um instante o sentido das coisas, por favor, ignora as palavras literais e sem graça. colecciona sinónimos de ‘namoro’ e soletra-os devagar enquanto a lua se despede do sol. promete que não mostras a mais ninguém a ruga-sorriso que brinca deliciosamente com o teu sobrolho. não tenho ciúme, descansa, desconfio é que alguém a compreenda tão bem quanto eu. finge que gostas de mim (como eu gosto de ti). embora me passeie livre e esvoaçante, sou mais tua do que julgas. mais do que te faço crer (mais do que quero). finge duma vez, conheço-te jeitos de actor. se estás perto e te fazes presente, se ocupas e te aproprias de todos os lugares que o meu olhar alcança ou imagina, então explica-me por que raio não podes fingir que gostas de mim? não é difícil, prometo. nem vai exigir grande esforço, sempre foste bom a matemática, de resto. romantismos aparte, trata-se de uma equação simples: um mais um (só pode ser) igual a dois.

vá lá, finge, eu não me importo. tenho amor para dar, vender, alugar, trespassar, leiloar se for o caso (tenho amor pelos dois). e não lhe conheço limites.


(quem sabe, um dia, o amor não leva a melhor)

Tuesday, December 21, 2010

Verdades

saber que, por mais que o tempo passe e o mundo gire, é só no teu colo que o meu silêncio se perde de riso. que é no teu ombro que se pousa o meu medo, e que quando o apanhas distraído, e sacodes, ele faz uma pirueta e cai no esquecimento. saber que é na tua boca perfeita que se esconde o conforto de um beijo que tarda a chegar mas se demora na passagem. que é no bolso no teu casaco bege que o meu suspiro se embala e fecha os olhos e adormece. saber que é só na cova do teu sorriso que o meu coração perde o norte e encontra o destino. e lá pede para ficar, dia após dia, sem pressa de ir embora.

Thursday, December 16, 2010

Não contes a ninguém

chega-te mais perto.

quero contar-te um segredo:
ontem à tarde, matei o meu coração.

não te assustes. afianço-te, agora ele está melhor. tanto quanto sei descansa em paz, na companhia dos anjos, dos arcanjos, das graças do mundo de lá. sempre ouvi dizer ‘antes só, que mal acompanhado’, pois bem, fiz-lhe um favor. poupei-o ao sofrimento de ver-me exposta a esta paixão de labaredas incandescentes que me queima e reacende ao mínimo toque, e me queima mais um pouco, sempre mais, dos pés à ponta dos cabelos. uma paixão insana e sangue-suga, que me atira para o abismo onde mais ninguém chega, nem cabe, que se alimenta do cheiro da minha pele, que dança ao sabor do eco das minhas palavras. a esta paixão, galopante, chamei ‘liberdade’. sempre gostei da palavra, pesando as circunstâncias, julguei ser a mais apropriada. para Descartes, age com mais liberdade quem melhor compreende as alternativas em escolha. tal e qual. deixei tudo para trás. ficar como estava, aonde estava, com quem estava, não era alternativa sequer. arrumei os cantos à casa e os assuntos pendentes, respondi às cartas que esperavam pela minha atenção, fechei as contas de e-mail, despedi-me dos vizinhos, dos amigos, da família. escrevi ‘adeus, estou em parte incerta’ na porta de casa. e no fim da linha, matei o meu coração. libertei-o da posse. poupei-o da minha ausência. da frieza do meu olhar, dos passos escorregadios, silenciosos, cada vez mais distantes. se o visses, nos últimos dias de vida, compreenderias este golpe de misericórdia. não lhe falava sequer. logo eu que lhe contava tudo. nunca o ouvi como merecia, é certo e sabido, ele resmungava uma ou duas coisas imperceptíveis mas perdoava-me sempre, rendia-se com um sorriso e um beijo de ‘boa noite’. nos últimos dias nem ‘boa noite’ lhe dizia, fingia-me de cega, surda e muda e entregava-me ao pecado autista da tal paixão, virava-me para o lado e dormia um sono profundo. não queria saber se ouvia, ou não, os risos a horas impróprias. nem tão-pouco se espreitava as despedidas sôfregas ao espelho ‘até já, meu amor’ repetidas até ao expoente da loucura. deixei de lhe falar. deixei de falar com o melhor amigo e o cúmplice de tantas aventuras. costumávamos brincar e dizer que um dia escreveríamos, a duas mãos, um romance. tolice. nos últimos dias, achei-o moribundo, insuficiente, incapaz de me acompanhar nas correrias desenfreadas vida fora. vi-o definhar, ficar pálido, desenxabido, desinteressante. deixei de o mimar junto à lareira, de lhe medir a febre, de querer saber se tinha fome ou sede, de perguntar como correu o dia e se passou bem a noite. deixei de cuidar. ignorei-o, pior, desprezei-o. secretamente fiz chacota dos seus achaques, choros e birras. deixei de entendê-lo. e ele a mim. deixámos de fazer sentido, juntos. por isso, não me julgues, não me condenes, nem contes a ninguém:

ontem à tarde, matei o meu coração.

e não acredito na vida depois da morte.

Tuesday, December 14, 2010

Ou não

quem te escreve não é senão a parte de mim que sobrou da rajada de vento que trouxeste pendurada no casaco. quebrei no momento exacto em que pousaste as tuas mãos nas minhas e as deixaste, ancoradas, no fundo das minhas costas. não te lembras do momento exacto, bem sei. não faz mal. há muito entendi que as lembranças não passam de um fantasma vagabundo e solitário. de uma força destruidora e silenciosa que invade todos os espaços vazios e os preenche de ar, irrespirável, que não se renova. desfiz-me em pedaços de matéria e cinza à velocidade da luz do teu olhar, o mesmo olhar que (ainda) os revira do avesso com as quase-promessas atiradas à mercê do acaso. explodi de prazer de cada vez que teimavas procurar o epicentro da minha dignidade. e, depois de o encontrares, implodi de raiva por te tardares em ir embora, por ficares esquecido ad eternum no calor do meu colo, por contrariares a certeza das horas e os minutos, por jurares que o amanhã só chega quando se ordena. rendi-me ao teu encanto maldito como o sol se rende à lua. para quê contrariar a inevitabilidade da natureza, afinal? deixei que me despisses sem pudor, sem embalo nem compasso, com a urgência de um explorador que procura um diamante em bruto. depois de ficar nua consenti que tatuasses, lentamente, o teu nome em maiúsculas no meu peito. não disseste o porquê (nunca dizes, de resto) mas percebi - para não esquecer, nunca, que o coração foi tomado de assalto,

por ti.

Monday, December 06, 2010

As razões que a razão desconhece

era mais fácil quando nos fingíamos de estranhos. quando, depois de mais uma noite de urgências e carências, fingíamos que o mundo continuava a girar, que a primavera vinha depois do inverno, quando fazíamos de conta que gostávamos que assim fosse, que a certeza do universo era a nossa religião. era mais fácil quando sem querer nos acotovelávamos na fila para o almoço e nos fazíamos de desentendidos, despercebidos, distraídos até, e virávamos a cara com o mesmo desdém dos turistas em terra de ninguém. e quando os nossos olhares se cruzavam era mais fácil, tão mais fácil, quando lhes atirávamos areia, rogávamos uma maldição, o que fosse preciso para deixar no esquecimento os abraços turvos e sôfregos trocados horas antes na clandestinidade da madrugada. quando fugíamos do cheiro um do outro a sete pés, mesmo quando o elevador teimava em nos acorrentar a escassos metros, quando nos vestíamos de preto integral para assustar qualquer pretensão de final feliz trazido no regaço dum domingo à tarde. era mais fácil quando nos passeávamos altivos, indiferentes, descrentes e dizíamos para quem quisesse ouvir, ou não, que a saudade era ilusão de óptica, miragem, oásis sem trilho de regresso. habituamo-nos ao conforto do esquecimento como quem se aninha numa manta-sofá. a passar ao lado da tentação do dia que acorda com o estremecer dos corpos colados, entrelaçados num só, pespegados nos restos de prazer que não se perderam na madrugada, como quem tem medo de ser queimado numa fogueira. era mais fácil quando nos despíamos do papel de amantes e nos obrigávamos a fazer um voto de castidade, uma penitência de silêncio, todas as rezas que fossem precisas para que a nossa história pagã ficasse enterrada num santuário longe da vista, de preferência longe do nosso faro de salteadores perdidos. era tão mais fácil quando os deuses e os santos compreendiam o ritual casa-trabalho-prazer-casa e não pediam explicações ou justificações. quando se escondiam acima das nuvens para não ouvir os gemidos que as nossas gargantas segredavam enquanto as minhas mãos procuravam as tuas e a lua testemunhava o caminho da nossa perdição. repito, era mais fácil quando nos fingíamos de estranhos. quando disfarçávamos o rubor do ‘bom dia’ à saída da confeitaria do costume com a capa da primeira revista que nos caísse no colo, e dissipávamos numa fracção de segundo a visão dos nossos corpos nus e cansados que, sem sabermos como nem porquê, persistiam em manter-se lado a lado no chão da tua sala. nunca vamos perceber, julgo eu, o alcance desta teimosia de nos entregarmos como adolescentes à descoberta insana do território do outro, mesmo conhecendo de cor todas as vias, passagens, atalhos e armadilhas e de nos rirmos das curvas, sulcos, até das imperfeições. nem tão-pouco vamos perceber a vontade de nos termos sempre que o sol se esconde, mais uma vez e outra, como se fosse a primeira ou a última. a vontade maior que todas as vontades, a vontade que é mal-educada, não pede licença para nada, vontade que empurra, invade e sai das entranhas a ferro a fogo. a mesma vontade que no fim se reduz a cinza, invariavelmente cinza que a brisa leva numa só rajada. era mais fácil quando nos fingíamos de estranhos. agora que decidi dizer-te ‘olá’ com a luz do dia a descobrir-me a vergonha e o sorriso tudo se complicou. de repente o mundo deixou de ser um lugar previsível e seguro, desconfio que as prisões abriram portas e que os ladrões andam a pilhar tudo por onde passam. e eu que me passeava sem algemas nas avenidas vejo-me confinada ao espaço aonde só chega a tua mão. agora que me expus sem dó nem piedade e que perdi o mapa de regresso a casa, dou voltas e voltas à procura do prazer do teu colo faça chuva ou faça sol. agora que abri a ferida lembrei-me que estou em alto mar sem bóia de salvamento à vista, agora que nem sei nadar e que não avisei ninguém para onde vinha, tudo se complicou. e o meu coração, que fingia contentar-se com as madrugadas clandestinas, pôs-se nu no meio da praça, meteu-se em pose num palanque e teve o descaramento de chamar pelo teu nome,

meu Amor.

Friday, December 03, 2010

P.S. Gosto de Ti

nunca gostei, de ninguém, como gosto de ti.

sem mais rodeios: gosto muito de ti.

e nem me parece sequer normal, imagina tu, este gostar tanto de ti. houvesse um decreto-lei sobre o amor e estou certa que o primeiro artigo seria qualquer coisa assim: ‘declara-se, para os devidos efeitos, que o amor é um encontro de vontades’ e entre parêntesis ‘mútuas, conhecidas, consentidas, equilibradas’. entendes agora porque não me parece normal? como pode ser, normal, se nem sequer te dás conta que este gostar existe, que respira sôfrego, que ganhou uma vida maior que a minha, que pula e dança de cada vez que te sente perto? como pode ser, afinal, se me usurpou o bom-senso para o vender ao desbarato numa feira de raridades? este gostar não é normal. nem quer ser normal, tanto quanto percebo. adora exibir-se, pavonear-se, cirandar nu madrugada adentro, voar a pique em céu aberto, aventurar-se no abismo do teu umbigo. e sabes que mais? olha-me nos olhos em jeito de desafio, zomba da minha angústia, faz-me cócegas nos pés sempre que o quero silenciar debaixo dos lençóis. há dias encontrei-o a falar com a vizinha da frente, a contar-lhe que vamos ser felizes, eu e tu, que vamos ser uma família, ter um lar, que está para breve. ela acenou com a cabeça, convicta, pareceu-me ver-lhe os olhos lacrimejantes com a emoção da boa-nova. não lhe bastava minar todos os pedacinhos da minha vida entre quatro paredes, este gostar (de ti) não tem vergonha na cara, veste-se de vermelho quando sai à rua, fala alto e gesticula, conta anedotas, histórias de encantar e umas quantas mentiras. que sentido isto faz? já para não falar do mútuo consenso, o tal do decreto-lei. nem do pequeno detalhe de não desconfiares que me viraste a vida do avesso, qual Indiana Jones, naquela noite remota desfeita em saliva ardente. sim, aquela noite trágica em que a tua boca tomou conta de todos os sulcos e recantos da minha pele. que sentido faz, quando tudo o que mais quero é que repares neste meu gostar? calem-se os santos, os ateus, os cépticos, os descentres. calem-se de uma vez, calem-se já (ouve-me). quero que repares nas covinhas do meu sorriso, que acertes na cor dos meus olhos, que elogies o balanço do meu vestido. quero eu que tu saibas que me aflijo de cada vez que o teu cheiro tropeça em mim, que o meu corpo fica quieto e trémulo junto ao teu, enquanto as nossas mãos se passeiam num jardim de papoilas e malmequeres que mandei plantar só para nós. quero dizer-te que me deito a pensar em ti e que é o murmúrio quente e cheio do teu ‘bom dia’ que me desperta, não o ribombar estridente do despertador que me devolve sem réstia de pena para o vazio da tua ausência. percebes, agora, por que raio este gostar não é equilibrado? porque me deixou sem termóstato, vê lá bem, tudo à minha volta é fogo e ar e rastilho, despertou-me os sentidos, até os meus passos se fundem num samba e o cheiro a castanhas assadas arrepia-me, imagina, lembra-me o calor do teu peito encostado no meu.

um dia destes, (te) juro, ganho coragem e grito(-te) assim do outro lado da rua:
gosto muito de ti.

Friday, November 26, 2010

Liberdade

andam loucas as meninas dos meus olhos. correm porta fora em desatino, de mão dada e a sorrir, teimam em rodopiar, livres e enfeitiçadas, no jardim do teu sorriso (até nos dias em que não estás em casa). é vê-las assim, loucas, com vestidos cor-de-rosa, caracóis ao vento, lábios lambuzados da gelatina de morango que lhes ofereces às escondidas. nem quando as chamo à noitinha obedecem, batem o pé, amuam, fazem figas e pedem aos deuses aos orixás aos oxalás para ficar mais um bocadinho, aninhadas, no calor do teu abraço.

(e sabes que mais? não as censuro.)

Sunday, November 21, 2010

Mãos dadas

és um bom lugar para ficar.

espera (desculpa-me a imprecisão, a falta de jeito para coisas literais, o embaraço quando falo de ti) és o melhor lugar para ficar.

lugar onde o sol não tem medo da chuva, nem do vento, nem da ameaça de trovoada. lugar de risos falantes, de abraços que se desfazem em mel, de segredos junto ao ouvido, de sonhos que não se perdem pelo caminho. lugar que encontra o destino. lugar de acasos inesperados, de frio na barriga, de cócegas da nuca até aos pés, de sobremesa depois do almoço, de comboio que não se atrasa.

lugar onde o espelho reflecte ternura. lugar de inocência e faz-de-conta, de chocolate quente que brinca com a língua, de roda gigante no centro da feira popular. és também lugar de mistério. de lua adormecida em quarto crescente, de curva que não sabemos aonde termina, de rua sem saída. és fôlego, suspiro, chispa. és lugar de gesto. de mar que corre para a praia de mão dada com as marés, ora cheias ora vazas. de areia que se faz estrada e não quer saber de cruzamentos. de brisa a cheirar a outono, de lareira que se acende num domingo à tarde, de manga-curta que sai à rua no inverno.

(ouve bem, e não duvides)

amor,
és o melhor lugar para ficar.


Wednesday, November 17, 2010

Noutra vida

cá estou eu, no fim do labirinto, mas contra todas as expectativas não te encontro à minha espera. arranjei-me a preceito, tratei das unhas, dos pés, dos cabelos, pus o perfume que mais gostas, calcei os sapatos com laço de veludo que tanto me magoam, vê lá tu, não me esqueci de passar a ferro o vestido guardado para as grandes ocasiões. nem sinal de ti. não me lembro do caminho até cá chegar, tamanha era a pressa, nem se deixei as chaves na porta de casa. vim a correr, percebes, logo eu que sempre fui avessa a maratonas. acotovelei o vizinho, o porteiro, o senhor da padaria, porque não quis chegar de mãos a abanar e fui ainda buscar os pãezinhos de leite que em tempos nos acordavam nas manhãs de sábado. lembras-te? lembras-me? nem sei mais se te lembras. dos pãezinhos, do ritual cama-sofá-cama que se arrastava além das horas, do esquecimento das coisas de adultos, das mãos-dadas a entrar no duche que virava banho de imersão. dos ralhetes que me davas por gastarmos muita água, dos risos felizes até ao tecto, das brincadeiras com bolas de sabão, das minhas costas que reclamavam um beijo teu, junto ao ombro, quando se queriam despedir da preguiça. dos meus passeios pela casa com a tua camisa da noite anterior cantarolando qualquer coisa imperceptível que só nós sabíamos o que era. do jogo da apanhada entre a cozinha e o corredor quando antecipavas que te tinha roubado também os chinelos, as meias, a dignidade. mal sabia eu que, afinal, eras tu o ladrão que de mansinho se apoderava de todos os pedacinhos do meu corpo, órgãos e entranhas, não poupando sequer o coração para contar a nossa história. levaste-me tudo, levaste tudo o que era bom, e nem as paredes que pintamos de violeta convencem o arco-íris a aparecer depois da chuva. o mundo continua a girar, atreve-se a continuar a girar, e a mim só me apetece sair de fininho para outra vida que não esta. sim, esta vida que deixaste vazia. já para não falar do silêncio insustentável da tua ausência, deste silêncio que abafa qualquer eco ou som, incluindo aqueles que me procuram de madrugada quando a cidade fica deserta. cá estou eu, no fim do labirinto, e mais uma vez o teu silêncio se pronuncia. parece-me que o oiço dizer alguma coisa, se calhar quer avisar-me que perdeste o comboio ou o metro ou o avião. as tuas desculpas que em tempos tiveram graça agora soam a fado. não importam mais. e enquanto o silêncio se desfaz em riso, eu atiro para longe os pães, arranco o casaco, o cachecol, os brincos, as pulseiras, o relógio, amaldiçoo e tiro os sapatos que tanto me magoam. de repente, a chapada, dou-me conta das lágrimas grossas de cansaço e rímel que teimam em cair e a manchar de negro o chão branco de porcelana e irrito-me de vez. chega. digo ‘basta’ alto e a bom som, e até o silêncio da tua ausência se cala para ouvir. basta. prefiro viver com muito pouco, do que quase viver contigo.

Friday, November 05, 2010

Final Feliz

julgava-me capaz de tudo. ares de princesa, corpo de menina-mulher, jeitos de ninfa inocente, provocações de diva. guardava na palma da mão a vontade de conquistar o mundo e de ser quem quisesse. sem esperas, nem demoras. sentia-me altiva, debruçada numa torre de marfim, protegida de duendes e gnomos dos contos de fadas, recostada na cadeira forrada a veludo vermelho. chamei-me de única, quis o sol só para mim, tomei banhos de mar fora de horas na companhia da lua. fiz-me de inteira e perdi-me no labirinto das grandes certezas que há no mundo. enfeitei-me de anjo, de céptica, de descrente. acreditei só na verdade que os meus olhos ensinavam, nos aromas que os meus lábios provavam, na areia quente que os meus pés podiam conhecer. e gostar. fiz-me também de sábia, contadora das histórias dos outros, usurpadora de todos os espaços vazios. ri-me até me fartar do riso, trocei da semântica da coisa chamada felicidade, mandei calar os vendilhões de sonhos.

até tu chegares.


vieste sem cavalo branco, montado na fatalidade da madrugada que acorda em alvorada. inacessível, inevitável, intenso. como só tu podes ser. ousado. mostraste-me, sem te pedir, que uma bússola também se zanga com o norte, e que o caminho faz-se a andar, mesmo quando há neblina a esconder o horizonte. pediste silêncio para ouvir os trovões e as gotas de chuva a encontrar chão. falaste baixinho para salvar o momento do barulho das nossas vozes. decidiste o que era ou não importante, fizeste um decreto-lei sobre o certo, trancaste o errado num baú. deitaste fora a chave. cantaste à lareira um samba sobre abandono, rabiscaste umas notas de amor para sempre num guardanapo de papel. e queimaste-as. esbarraste nos meus olhos e correste porta fora. sem parar, nem hesitar. como só tu podes fazer.

não voltaste.
(adeus).

Tuesday, October 26, 2010

Quase perfeito

chega-te para lá, longe, não tão perto. estás perto demais. não ouves? depois, quando te cansares de estar sozinho, volta para mim, não precisa de ser já, sossega. nem precisas de dizer nada, basta dares-me a mão. eu sei ler-te, o silêncio é tão bom e as legendas são inúteis, sei da falta que nos fazemos, sei mais do que consigo saber, mais do que quero. não vou forçar. o que julgas? nem pedir. só voltas quando a nossa ausência te atravessar o peito como um punhal ardente, embora não perceba de armas nem de curativos. voltas, quem sabe, quando a nossa ausência ocupar todos os espaços que julgavas teus e vazios. ou quando me quiseres contar que me esqueceste, tanto faz. voltas quando tiver de ser, porque sim, porque não há tempo a perder, porque já nos perdemos. eu sei que voltas. e quando chegares, pé ante pé, fala-me baixinho daquelas coisas incríveis que vamos ser um dia, das pontes que atravessaremos juntos, das corridas desenfreadas pela praia e das chegadas ao topo da montanha só para dizer ‘tchau’ ao mundo lá em baixo.

e chegaste, de novo, enfim. estás de novo tão perto, caramba. tenho medo, não percebes? eu sei lá se chove ou se está sol, se faz frio ou calor, chegaste e é o importa. reparei que nem fizeste a barba, não faz mal, eu também não trouxe o vestido novo que comprei a pensar em ti. se calhar foi da pressa de nos vermos. ou desleixo. por um instante lembro-me de perguntar se tens comido bem, mas no instante seguinte fazes-me esquecer as perguntas enquanto rodamos num beijo com sabor a mel e nozes. tens de parar com essa mania de evitar as minhas perguntas, pior, de trancar os pontos de interrogação a sete chaves no quarto dos fundos. não paremos é de rodar, por favor. mais um beijo, isso, mais um daqueles que dura uma estação, um ano, uma vida, se quisermos.

quero dar-te colo, mas não penses que é por te sentir triste. dar-te colo, só, não percebes? e contornar com o dedo indicador a linha das tuas sobrancelhas, passar depois pelas bochechas, brincar com a ponta do nariz, descansar na boca. mergulhar nesse teu cheiro até lhe sentir as entranhas, sem estranheza, estou acostumada. quietude por fim. deixar-te roubar o meu perfume, adivinhar-lhe todos os aromas e lugares por onde passou, ouvir-lhe os segredos sem abrir a boca de espanto. quietude, mais uma vez.

sim, podes ralhar comigo, gostas tanto, eu sei. também gosto, já sabes. deixa-me então brincar com as tuas pestanas enquanto ralhas por me ter esquecido das chaves de casa, de comprar a comida da gata, das contas por pagar e eu sei lá mais o quê. deixa-me, assim, rendida e com os pés a roçar ao de leve no arco-íris. falta-me ainda ouvir o que tens a dizer até ao fim, sem interromper, desculpa o mau hábito. desculpa, mas tenho de sorrir. por mim, por ti, por nós. não aguento, não vês? e num segundo que não se atrasa, sorrio-te, baixinho e devagarinho, para não assustar os vizinhos nem alarmar o casal quase-perfeito que se passeia à nossa frente.

sorrio e juro, prometo se fizeres questão de formalizar, que desta vez não vou soltar a tua mão da minha.

e sorrio, de novo.

Monday, October 18, 2010

A chegada

no dia em que te conheci não senti a estranheza do primeiro 'olá, tudo bem?', nem a ânsia de saber o que vai nesse olhar. não disparei as piadas típicas de menina que não se decide entre a razão e emoção, nem me preocupei com a roupa banal, escolhida à pressa na manhã que não espera por ninguém. não tive frio, mesmo sendo inverno, nem tão pouco me preocupei com o desconforto dos atropelos de quem passava por nós sem ter tempo para dizer 'tchau'. não procurei entrelinhas nas tuas respostas, nem sinais do destino nos pedacinhos de silêncio que deixamos pousados em cima da mesa de vidro. não me importei quando as nossas mãos se pespegaram no chocolate que partilhamos a meio da tarde, nem mesmo quando brincaste sem autorização com o laço do meu vestido ao mesmo tempo que falavas dos teus cheiros preferidos. no dia em que te conheci não tive pressa para saber tudo sobre ti, sobre a tua família, amigos, conhecidos, brincadeiras de infância, sonhos e vontades por cumprir. ao contrário, contentei-me com os pequenos 'nadas' que ias soltando à medida que o sol se preparava para dormir e a lua se punha cheia na alcatifa do céu estrelado. não reparei no desalinho do teu cabelo, nem se tinhas o risco à direita ou à esquerda, tanto faz, pensei. não deixei de sorrir quando escolhemos o mesmo doce e pedimos café sem acuçar para acompanhar. não estranhei me teres oferecido o guardanapo de papel onde escreveste qualquer coisa sobre a cor dos meus olhos, ou me queixei do cliché da rosa que 'sem querer' compraste ao marroquino que se sentou ao nosso lado. no dia em que te conheci achei-te tão inevitável como primeiro ser dia e depois noite. e amei-te, muito antes de saber o que éramos, o que podíamos ser e o que fomos, enfim.

Thursday, October 14, 2010

Adeus

andei tempo demais à espera que me deixasses, amor. esforcei-me tanto para que me odiasses. não um ódio mansinho e passageiro como os que se compram numa birra de domingo à noite, mas um ódio visceral, dos que trespassam e destroem tudo por onde passam. dos que nem sequer deixam rasto, dos que apagam qualquer réstia de vida que por ali existiu. queria que implicasses com as manias das toalhas da mesma cor, que tropeçasses nos livros esquecidos sem inocência junto ao sofá, que te queixasses do pequeno-almoço na varanda que não chegou a acontecer. queria que não reparasses no último corte de cabelo, nas madeixas loiras despropositadas, na provocação da mini-saia-cinto, no perfume chanel que tatua todos os sítios por onde passa. queria que te irritasses com os meus ares de quase perfeita passeando nua pela casa de cigarro em riste. que te envergonhasses dos meus risos e achaques sem hora prevista para acontecer. que tirasses o 'amo-te' da ponta da língua, que não segredasses histórias de outros tempos ao meu ouvido, que te cansasses de procurar o meu corpo enquanto esperamos, deitados, pelo dia seguinte. queria mandar-te parar de cada vez que me roubavas para a nossa dança, dizer-te que nem gosto mais da música que um dia nos embalou num abraço só. que me esqueci da letra e que os acordes me irritam. gritar-te que nada mais é 'nosso' além do espaço vazio e silencioso onde nos vestimos de sombras e pó. queria que trocasses a fechadura, que me deixasses de chave na mão, do lado de fora.

esperei que me deixasses e tu não obedeceste. ao contrário, fixaste a tua presença a meu lado, como fazem as famílias quando velam os seus defuntos. criaste raízes em meu redor, cultivaste um jardim privado na palma da tua mão, só para eu sentir todos os dias o cheiro a malmequeres. ocupaste todos os poros da minha pele com o calor da tua, sempre atento ao mais pequeno vaciliar do meu sorriso. amealhaste os meus monossílabos à procura de um significado maior, pedinchaste a atenção do meu olhar, procuraste as minhas mãos pequenas e nem ligaste quando as descobriste secas e ásperas.

e o tempo foi passando, amor, sem nunca me deixares. enganei-me nas previsões, afinal. julguei-te mais forte e a mim mais fraca. num fim de tarde qualquer fui eu que quebrei o elo, o nosso elo. deixei tudo como estava - a casa sempre foi mais tua que minha, de resto - e antes de sair, a correr, pousei na mesinha da entrada um 'adeus' escrito num papagaio de papel. ouvi ainda, ao longe, a porta da frente fechar-se como trovão e tu a perguntar da janela da cozinha a que horas voltava para jantar.


não tive medo, nem olhei para trás.


Sunday, October 10, 2010

Acaso

ela era de Vénus, ele de Marte. não se teriam conhecido não fosse a viagem só de ida ao planeta Terra. ela para começar de novo, ele simplesmente para seguir a caminhada. ela queria andar descalça na areia molhada, dançar ao som da chuva, comer pipocas na última sessão de cinema. ele não sabia o que queria. ela vivia melhor de dia do que noite e encontrava um arco-íris no centro de cada chafariz. ele tinha medo da luz do dia e do reflexo das coisas verdadeiras. ela cantava por tudo e por nada e achava que todos os lugares tinham uma música qualquer a soar no horizonte. ele não sabia músicas de cor mas reconhecia todos os sons da natureza.

cruzaram-se numa rua sem saída num domingo que tinha tudo para ser igual aos outros. ela, que não gostava de ficar sem norte, pediu-lhe indicações. ele, que não sabia o que queria nem para aonde ia, resolveu perder-se com ela.


nesse domingo e nos seguintes.

Thursday, September 09, 2010

(Longe da) Bruma

quando foste embora não levaste só o sorriso dos dias em que fomos felizes. como se não bastasse levaste também o sol, o meu sol, enfiado na mala gasta que usavas sempre a tira colo. assim fiquei, mais de um mês, na bruma da tua ausência e com as nuvens a teimarem fazer o luto de nós (e por nós, talvez).

passado esse inverno, recuperei o sol que entretanto tinha ficado esquecido numa loja de relíquias em segunda mão. e coloquei-o bem alto, lá no topo, junto aos sonhos por realizar. para não esquecer (nunca) que comecei de novo. e desta vez é a sério: deixei-te para trás, algures na bruma.

Thursday, September 02, 2010

Girassol

foi num final de tarde que ela dançou sem música, com a cabeça pousada nas nuvens e os pés assentes na areia molhada. devia ser segunda-feira ou sábado, tanto faz. o tempo talvez tenha parado só para vê-la, inteira e livre, a passear-se naquele ritmo de desafio. e ele quase podia jurar que a viu sorrir, de novo tímida e inquieta, quando o mar lhe chegou de mansinho aos tornozelos e a abraçou na viagem de regresso a casa.

Tuesday, July 13, 2010

A princesa que quis ser menina

peguei no carro e parti. lembro-me que estava nevoeiro e que a estrada parecia deserta, lembro-me que não encontrei caras conhecidas nem cartazes a anunciar histórias felizes de cinema. lembro-me que era verão mas não avistei praias ou esplanadas, nem tive calor apesar do casaco vestido à pressa. lembro-me que nem sequer me despedi de ti, talvez porque o "adeus" há muito estava anunciado. parti sem destino, a fintar os planos do dia seguinte e do que vem depois. esqueci o telemóvel, despertador, o computador, a agenda, as reuniões, os compromissos com amigos, os aniversários, o almoço de domingo em família e as férias reservadas. esqueci porque sim, porque tinha de ser, porque era urgente. esqueci tudo porque me cansei. é isso mesmo. cansei de dizer "está tudo bem", de responder segundo a etiqueta, de andar no sentido da marcha. cansei de não chorar, de remar sozinha em alto mar, mesmo não percebendo de navegação e afins. cansei de (re)inventar histórias que afinal são de ninguém, de querer finais felizes porque um dia alguém falou de príncipes e princesas e castelos.

sim, parti. não sei quanto tempo passou, nem que tempo passou. não sei se o outono despiu a cidade que tantos dias vi a amanhecer, nem se o inverno lhe trouxe o encanto das luzes de todas as cores a anunciar que é natal. não importa, por agora. afinal, o tempo sabe esperar por quem ousou deixar tudo para trás para não abdicar de ser feliz.

Saturday, June 26, 2010

Era uma vez

às vezes uma vírgula não basta. é preciso um ponto final. um ponto final nos trambolhões na gramática das meias palavras, no olhar de desafio de quem não sabe o que quer, nas fintas das promessas ditas a céu aberto, no sorriso envergonhado da mentirinha que deixou de ter piada. é preciso um ponto final, sim, um grande ponto final. nos sonhos roubados num momento de prazer que sempre termina, nos beijos que chegam tarde e a más horas, e que ainda por cima não se vão embora quando queremos. nas lágrimas que não chegam a cair porque a fonte secou num dia de sol, no rosto que se cansou de ficar à espera na estação de comboios onde outros se encontram. um ponto final, bem marcado, nas noites em que as nuvens são gigantes e cobrem as estrelas e o sono fica esquecido numa outra cama qualquer. no silêncio ensurdecedor da música que ficou nas paredes da sala, e se repete vezes sem conta, no caminho que deixou de fazer sentido a dois.

uma vírgula não basta. é preciso um ponto final. sim sim sim, um grande ponto final, escrito a preto carvão, a estrear o caderno novo. porque as novas histórias merecem ser pintadas numa folha em branco sem reticências ou linhas rectas ou palavras riscadas. e todas, mas mesmo todas, devem começar pelo era uma vez que não tem medo do fim.

Sunday, June 20, 2010

O amor também se veste de branco

era um amor que vivia das recordações de um dia de verão, que saltava à corda com as memórias de infância e que nem se deu conta que afinal o tempo passa. era um amor feito dos sorrisos de outrora, da primavera e dos seus pólens, de bancos de jardim acabados de pintar. era um amor arrebatado num fim de tarde tendo apenas o mar como testemunha. era um amor que acreditava em infinito, que se embrulhava de estrelas para dar de presente à alvorada. era um amor que julgava que todas as coisas eram possíveis mesmo quando os outros diziam que não. era um amor sem desviar o olhar do caminho e que corria livre na areia queimada. era um amor que brincava sem fazer de conta porque sabia que a vida traz surpresas inesperadas. era um amor que se alimentava de pequenos gestos, por isso acordava bem cedo para os coleccionar logo pela manhã.

era um amor que um dia esteve em alto mar e que descansou, enfim, numa praia deserta sem lugar no mapa.

Tuesday, May 25, 2010

Venham mais cinco, por favor

diz duas ou três coisas sem sentido num fôlego só, mergulha no mar e brinda com a lua cheia, ri só porque sim porque tem de ser, elogia um desconhecido que se senta ao teu lado no banco de jardim. fotografa as primeiras rugas, dança sem música numa sala de luz apagada, começa a ler um livro pelo fim. entra no cinema a meio do filme, perde o comboio por um minuto, brinca ao faz de conta com as crianças do teu bairro, salta o muro para roubar um malmequer. deita-te nua numa praia de ninguém, espera pelo pôr do sol que a noite traz de mansinho. viaja sozinha, apanha boleia para destino incerto, arruma aquelas coisas que ficam sempre para depois. aprende a tocar viola numa noite de serenata, dorme ao relento, acorda antes da alvorada. escreve uma carta ao pai natal, festeja o carnaval numa tarde de verão, dá o teu nome a uma estrela. deita fora o que não serve, guarda numa gaveta o que já é passado, atreve-te a fazer planos que não interessam a mais ninguém (senão a ti).

deixa-te levar, perde-te, encontra o norte numa bússola qualquer mas saboreia, sempre. a vida não te pode pedir mais nada senão isto de tratar a felicidade por tu.

Saturday, May 22, 2010

O sumo que sabe a pêssego

ela gostava de lhe falar de amor. gostava de contar histórias com romeus e julietas e de dizer, com os olhos cheios de tudo, que o amor é mesmo assim, feito de magia e de coisas impossíveis. ela gostava de abraçá-lo e descobrir com ele, todas as manhãs, que o primeiro dos abraços tem sabor a chocolate e se veste de lilás. ela gostava de viajar com ele de mãos dadas e esquecer-se do bilhete de regresso em cima da cama, porque o amor prega dessas partidas.

ela julgava que todas as coisas eram grandes e importantes, como aquele amor. como o seu amor. julgava que a chuva lhe limpava as feridas e o sol acordava de propósito para lhe dar um beijo de bom-dia. só para ela e para o seu amor. até que descobriu, num desses dias comuns, que o amor afinal tem vida própria e também ri e mente e abandona.

sem o avisar, foi-se embora. sem avisar ninguém, ela foi-se embora. e em silêncio virou costas ao amor.

Tuesday, May 04, 2010

O que eu sei

de ti,
as entrelinhas do meio sorriso, o quase abraço quando me olhas em silêncio, as palavras na hora certa e as que guardas no bolso de trás. as pernas que correm mais do que o fôlego e o querer tudo para ontem, porque viver é urgente. o balanço do que não partilhas e o luar que conquistas quando revelas mais do que afinal não é só teu.

de mim,
a timidez disfarçada num olhar que não se desvia, as pedras que arrumo da calçada num passeio sem destino. o toque que sabe a mar salgado, a luz incendiada do cabelo em desalinho. os planos com hora marcada e os encontros que ainda estão por acontecer. os brincos escolhidos sem acaso num brinde que não se repete. os dedos pequenos que escondem contos de fadas, porque sonhar é preciso.

de nós,
as mãos dadas quando o tempo se esgota, as voltas ao mundo sem sair do sítio, os sonhos adiados no banco de jardim, as histórias para contar, os dias e noites sem nome. os desertos atravessados de uma vez só, os oasis perdidos num recanto qualquer, as flores sem data anunciada, os hinos e romances devorados junto à lareira que não se apaga. a paixão de um momento que não quer ser amor, a ternura infinita da porta entreaberta que conquista o desencanto. o resgate da infância que não se perdeu pelo caminho, o lugar certo para ficar em dias de chuva, a queda livre quando não há nada a temer.

e o tanto que fica por dizer (porque é nosso, como sabemos)

Wednesday, April 21, 2010

Gelado de morango

no dia em que roubarmos o tempo tu vais-me buscar cedo a casa. e eu, sem surpresa, vou trazer ainda o cheiro dos lençóis largados num impulso e a carteira com uma mão cheia de beijos (para te dar só depois do almoço). tu levas o sorriso solto no bolso de trás e o cabelo desalinhado da noite passada sem dormir. eu uso um vestido amarelo para te lembrar que o sol se juntou a nós (mesmo sem pedirmos muito). vou dizer-te ao ouvido uma ou duas coisas sem sentido, confessar um segredo duma tarde qualquer e adivinhar as perguntas que não esperam pela resposta. e tu, sempre tu, vais pegar-me ao colo e rodar-me numa valsa, parando pelo meio para olhar sem ver quem passa.

nesse dia, roubado, o tempo não será de mais ninguém senão nosso. porque todas as coisas vão ser possíveis. todas. mesmo as que não sonhamos. no dia das coisas impossíveis vamos voar de mão dada e rasgar o céu azul a saber a verão. e quando estivermos cansados, sei que vamos partilhar com a lua um gelado de morango junto às gôndolas que nos levarão de volta a casa.

Thursday, April 15, 2010

Quando a vida se interrompe

digo-te não. embalas-me na tua dança e eu troco o não por um talvez, quem sabe. chega o depois e tu, silencioso, esperas por mim no fim da rua que virou avenida. roubas-me o beijo sem promessa. eu arrisco (por que não?). a seguir vem a madrugada, serena, trazendo no sorriso o voo encantado das andorinhas. eu recuo (porque sim). é tarde, afinal. é tarde e o mundo espera-me na estação do costume. desculpa, comprei bilhete só de ida. mas deixo-te uma carta no banco do comboio. lá dentro, o meu coração, diz-te assim:

esgotamos as palavras
(meu) amor.

Wednesday, April 07, 2010

As coisas importantes que não são coisas

olha-me devagar e pousa no meu colo as flores que roubaste no jardim da vizinha. ouve as histórias que nem sempre ou quase nunca fazem sentido. mata saudades do cheiro a baunilha do meu cabelo e serve-te de beijos ainda salgados do último banho de mar. deixa para depois o que não importa e ri baixinho para não assustar o vento que tropeça em nós. brinca com o laço do meu vestido e diz-lhe que o cetim fica-me a matar. confessa que gostas e que queres mais, sempre mais. se quiseres, e vieres para ficar, prometo que te dou a primavera de presente.

Thursday, March 18, 2010

A Primavera que está a chegar

não escolheste o melhor dia. não tinha vestida a roupa comprada na véspera, nem os olhos pintados de azul. as mãos estavam secas de tanto brincar com o frio e o cabelo fintava o vento que parecia não dar tréguas. o sorriso ficou esquecido nas prateleiras duma casa qualquer e o abraço foi empurrado escadas abaixo. não trazia as cartas que te escrevi nas noites sem descanso, nem o perfume das tardes de verão. não avisei o carteiro, nem os vizinhos da frente. não fiz a cama de lavado, não troquei os cortinados já gastos pelo sol. não reservei a mesa à janela no restaurante de todas as promessas. não pedi à chuva que parasse por um segundo, nem sequer rezei para que o inverno batesse com a porta.

apareceste-me, (pois claro), como o frio na barriga sem aviso prévio. e o teu coração, altivo e orgulhoso, arrastou-me vida fora.

Thursday, February 04, 2010

Baunilha e chocolate

ele era um sonhador,
ela era realista
e conheceram-se na noite em que a vida e os sonhos brincaram às escondidas.
quando ele a encheu de sorrisos, segredos e promessas
ela beijou-o, em silêncio,
calando a cidade vigilante que teimava em ficar acordada.
ele quis tudo nela, para sempre,
ela ficou com ele, até de manhã.


ele, que era um sonhador, ficou-se pelo sonho.
ela, que era realista, levou-o na palma da mão.

Sunday, January 24, 2010

Cinderela

se o mundo te descobrisse, como eu,
tenho a certeza que o sol se esconderia,
envergonhado,
ao ver o brilho do teu sorriso,
qual cinderela
ainda a acreditar no (amor) que não chega.

Tuesday, January 19, 2010

Palavras que não esperam

falei-te hoje ao ouvido. não consegui escolher as palavras, desculpa. queria dizer-te as melhores, as que mereces, as que não podem ser esquecidas. falei-te de trivialidades, do novo filme no cinema, da revista que comprei no fim-de-semana, do último restaurante que me surpreendeu. falei-te do tempo, do frio que me acorda de manhã, do sol que desponta a medo durante a tarde, da lua cheia que ilumina as noites que parecem não ter fim. falei-te de amigos que não vejo mas que a memória não esquece, daqueles que me acompanham em todos os momentos, dos novos amigos que me pegaram pela mão. falei-te das coisas que ficaram por fazer, dos papeis que se amontoam no fundo da gaveta, dos sonhos que ainda espero concretizar. falei-te de lugares que perduram na minha lembrança, das pessoas que conheci sem sequer falar, dos sorrisos que retribuí sem pedir nada em troca. falei-te das ruas que percorri sem parar, das caminhadas com o sol a queimar o chão, dos passos ansiosos de quem espera pelo que não chega. falei-te das certezas e incertezas que invadem os meus dias, das perguntas que ouso fazer, das respostas que procuro sem vacilar. falei-te dos poetas que quero ler, das músicas em lista de espera, das histórias e estórias que recebo de coração aberto. falei-te da rotina das tardes preguiçosas, do alvoroço de um dia que começa sem despertador, das noites que percorro sem destino. falei-te de gostos e desgostos, do que fica para sempre e do que se perde irremediavelmente. falei-te de encontros e ausências, caminhos solitários, conquistas partilhadas, de lutas que ainda quero travar e de tantas outras que já não são minhas, nem de ninguém.

falei-te ao ouvido e, sem te querer acordar, sussurei "amo-te".
o resto fica para depois.


Saturday, January 16, 2010

Quero-te muito (por ele)

pergunto-me se já acordaste, ou se ainda dormes com as mãos entrelaçadas para não deixar escapar os sonhos que te visitam à noite. talvez tenham passado duas, três ou quatro horas desde que te olhei e saí porta fora, apressado, com o peito apertado de tanto amor. talvez tenha passado mais tempo até, não sei. a vida não pode esperar, mesmo quando é o vazio da tua ausência que me espera. despedi-me lentamente e olhei-te, uma e mais outra vez, o cabelo desalinhado, as costas descobertas, os braços esquecidos sobre os lençóis, o rosto sereno. nunca te disse, mas enquanto dormes tenho quase a certeza que o mundo à tua volta pára a admirar-te, como eu nesta madrugada sem alvorada. enquanto dormes sei que és finalmente livre, senhora do teu destino, guardiã de todos os segredos. por isso a vida dá-te tréguas, baixa os braços, nada mais espera de ti senão o descanso merecido. queria ter-te visto a acordar, ou acordar-te com um amo-te sussurrado ao ouvido. queria sorrir ao ver-te encolher os ombros, com os olhos pequeninos ainda fechados, como se ainda fosse cedo demais para falar. tu e a ideia de que há horas marcadas para as coisas certas. tu e a mania de teres sempre razão, de saberes sempre o que queres, mesmo quando não sabes e finges ser dona da situação. tu, caramba, como és linda nessa segura fragilidade de quem nunca pediu para crescer. arrepio-me só de lembrar como te quero, sem limites ou prazo de validade. quero-te nos passeios, nas esplanadas, nos domingos ao sofá, nas estreias de cinema, nos jantares inesperados, nas viagens sem planos. quero-te tanto. quero-te à minha espera quando chego a casa. e quero esperar por ti no final do dia. quero-te no verão, no inverno, sem esquecer a primavera e o outono. quero-te sempre, sempre, mesmo quando não te quero.


Tuesday, January 12, 2010

Quero-te muito

hoje, ao sair da cama, tropecei na tua ausência. passaram duas horas desde que saiste, ainda de madrugada, com o meu cheiro entranhado no calor do teu abraço. não te disse, mas pressenti que ficaste a olhar-me durante algum tempo, demasiado tempo, até te lembrares que a vida chamava de novo por ti.

não quiseste esperar. partiste sem demora, sem vacilar. dizes que os sonhos adiam a vida. e eu prefiro os sonhos do dia-a-dia. os encontros e desencontros, inesperados ou planeados, a surpresa de uma descoberta e o gosto doce de uma vitória. o tudo ou nada, perder e ganhar. o céu é o (meu) limite.

mesmo sabendo isto, preferiste ir embora. logo hoje, que te queria ao acordar. nem precisavas de falar (como tanto gostas) ou fazer-me rir (como eu gosto). queria-te, simplesmente, neste momento sem repetição, nem fotos para contar uma história. queria-te.

não sei se pensaste em voltar para trás ou se esboçaste um sorriso no caminho para casa, se te lembraste de mim enquanto ouvias a tal música ou se fizeste planos a dois para o cinema que estreia amanhã. sei o vazio que deixaste, o rasto de saudade que ficou esquecido em todas as gavetas, e os livros perdidos no sofá que é só teu.


não te preocupes, amor, guardo aqui o teu coração, junto ao meu, para saberes sempre onde o encontrar.