Wednesday, October 28, 2015

Hoje vamos sair. “It’s a date, dear”. E, desta vez, sem entrelinhas: um convite para sair contigo. Entretanto, perdi a conta aos anos em que vivemos, clandestinos, como dois cães abandonados, entre o meu T1 e a tua casa vista-mar. Foram anos bons. Estupidamente bons. Lá fora aconteceu o youtube, o Sócrates, a crise e umas quantas vitórias do Porto. Vivemos alheados do mundo, sôfregos um do outro, entre aromas agridoces e picantes. Fomos mais um para o outro do que algum dia admitiremos. Viste-me a primeira vez num baile de fim de ano. Apresentaram-nos com alguma pompa: tu mantiveste-te à altura da circunstância, eu nem por isso. De princesa só tinha o ar e o vestido. Era uma miúda à tua beira. Uma miúda com o coração partido. Não se parte o que já está quebrado, mas fiz de tudo para disfarçar o nervosismo quando, muito antes do fim da noite, segredaste ao meu ouvido: “vamos?”. Tu e o teu cheiro de pessoa que sabe o que quer e que tem sempre o que quer. Se podia ter sido mais romântico? Sei lá. Nunca te soube resistir, mesmo quando achaste que sim. Não me lembro se demos a mão, logo ali, no cimo escadaria de mármore. Prefiro pensar que sim e a coisa fica mais composta. Foram precisos muitos anos para te saber minha pessoa. Fizemos do desapego o nosso mantra e caímos como uns tontos, felizes, nessa cantiga. O hábito é um bicho estranho. Estranha-se e depois entranha-se, da ponta dos cabelos até à última curva da alma. Sobrevivemos aos invernos demorados, aos natais separados, às férias que nunca chegamos a fazer. Sobrevivemos às más-línguas, aos boatos, aos vaticínios “ele é demasiado velho e sério para ti” ou “ela não sabe o que quer e vai fazer de ti gato-sapato”. Vamos aos factos: sou ainda a miúda que vai na tua conversa e que, sem desconfiares, faz poesia com o teu abraço. Se calhar um dia vou ser como as outras: forçar birras só porque sim, dizer mal porque convém, magicar jogos para queimar tempo. Se calhar um dia vou ser mais magra, finalmente, fazer desporto e lista de supermercado. Um dia vou colecionar tupperwares. Não sei se é por achares que quero mais ou se estás, como um saloio, a borrar-te de medo dos quarentas. “It’s a date, dear”. Os homens precisam de ninho e as mulheres precisam deles (como quem precisa dum cigarro) – uma vénia ao nosso MEC. Um dia vamos ser velhinhos e vamos recordar, entre mantas e copos de vinho, este primeiro date, dez anos depois daquele baile. Tu vais perder-te em detalhes, como sempre, eu vou fazer de conta que não reparei que me abriste a porta do carro. As minhas amigas dizem que há homens para casar e homens para levar para a cama. As minhas amigas acham que és o tipo de homem para levar para a cama. Assim seja. Nunca saberei a diferença. Mal desconfiam que o meu homem de cama vai levar-me a sair num date a céu aberto.

Friday, August 07, 2015

Nunca encontrei tabuleta a dizer “perigo”, mas sei por experiência que és um irresistível prenúncio de acidente. Qualquer coisa a ver com a curva apertada do teu abraço, de onde jamais sairei ilesa. A culpa é daquela primeira tarde, antes de todas as nossas tardes, em que fomos até ao fim do mundo e voltamos (ou ficamos lá e nem reparamos). Havia tanta coisa para dizer e ficou tudo para depois. O tempo fugia-nos entre os dedos e era urgente viver para lembrar: a minha boca a descobrir a tua, o tango que nunca chegamos a dançar, o teu sorriso entre as nossas roupas. Deixei de ter medo de ti. Quando te encontrei eras bom demais para ser verdade e, agora, a verdade é que continuas a ser e eu não me importo. Não me importo de, perto de ti, continuar a parecer uma menina pateta que vê neve pela primeira vez. Faço de conta que percebo por que raio gostas assim de mim. Dessa forma maciça e firme como só as árvores conseguem ser. Acho que nunca verei o mundo da maneira como vês. Cru e sem espaços vazios. Para mim tudo é felicidade ou caminho para lá chegar. E haverá de ser sempre assim. Tu de bússola em riste e eu a guiar-me pelas estrelas. Haverá de ser sempre assim, mesmo quando nos cansamos um do outro e fingimos viver bem com o coração partido. Não sei se alguma vez te disse: és melhor que o meu melhor sonho. Ou isso, ou não te sei dizer adeus.

Friday, July 31, 2015

Podes dizer ao mundo que estou de volta. Lá atrás ficou a estrada, onde dancei à chuva e aprendi a ser feliz. Sem ti (foi tão difícil). Nas pontas dos dedos ainda encontro o sabor apimentado da liberdade. E no peito, deuses, no peito voam borboletas. As mais bonitas borboletas. Podes lançar o boato que não sou a mesma, que trago uma saia demasiado justa – alguém proíba esta infração – e um batom capaz de tudo. Podes dizer que voltei e que, desta vez, é meio a sério meio a brincar, porque esta vida não foi feita para se levar doutra maneira. Peguei na falta que me fizeste – tanta e tão pesada – e desfi-la em pedaços, no paredão onde prometeste amar-me para sempre. Já dizia a minha avó: de sábio e de louco todos temos um pouco. Conta o que descobri: a saudade é uma estação de partida, nunca de chegada. Não se encontra chão em mar salgado, nem cortinas a tapar um céu estrelado. Conta que os malmequeres não querem querer, e que quem quer tem de escolher outra flor para gostar. Conta que a desilusão é mais afiada que um bisturi. Ponto final parágrafo. E que, mesmo assim, é melhor sonhar com finais felizes, do que somar dias de calendário. 

Friday, June 07, 2013

‘Tu não sabes o que dizes’. E ela não sabia, realmente, porque vivia de gestos e ele, primeiro, descobriu as palavras. Cedo percebeu que preferia a companhia dos sinónimos, antónimos e predicados à das pessoas. Era um homem de distâncias e de manter à distância. Estudou códigos linguísticos, equações matemáticas, algoritmos e esquemas lógicos, devorou romances à procura da definição exata para a primeira pessoa do plural. Nunca escreveu uma linha sobre estes assuntos e concluiu, anos mais tarde, que depois das certezas universais existem todas as outras coisas. O medo e a liberdade. A felicidade suprema da partilha. As coisas escorregadias, preciosas e perigosas. Foi mais ou menos nessa altura que a encontrou. E percebeu, num instante, que nem toda a poesia do mundo serviria para decifrar o enigma daquele olhar azul, que lhe aconteceu no verão mais quente de sempre. Desapegou-se das palavras, das lógicas e das razões. Ela entrou-lhe porta adentro sem dar tempo para arrumar a casa e o coração. E às tantas é mesmo assim. O caos e a fragilidade a conviverem debaixo do mesmo teto. A paixão, a sofreguidão e a entrega de mãos dadas com a saudade e a perda. A melodia perfeita e profana que não se encontra nas histórias. Porque o amor é um segredo, que se conta ao ouvido.

Friday, March 15, 2013

Disseram-lhe que só no fim da vida se sabia quem tinha sido o grande amor. Com o passar do tempo percebeu que esta era uma grande mentira que se contava para abafar desassossegos. Foi num instante que ele percebeu que ela era a tal. O grande amor. Foi num instante que sentiu que a vida tal como a conhecia tinha acabado e que nada mais seria igual. Porque agora havia ela, ela e o cabelo dela, ela e o cheiro dela, ela por todo lado: ela. Pequenino acidente demasiado irresistível para se escapar ileso. O único grande amor. Ela. Conheceu-a cedo demais, odiou-a por muito tempo, e amou-a até perder a memória. Outras vieram, antes e depois, mas nenhuma comparável a ela. Ninguém roubou tantas estrelas ou plantou girassóis como ela. Nenhum outro amor construiu castelos em territórios sagrados. Provavelmente ela nem deu conta. Agora ainda se encontram, entre cafés transviados e frases de novela das cinco, como se devessem alguma coisa um ao outro. São uma miragem do que foram, juntos, e nada ficou além da melancolia típica de amor-que-podia-ter-sido-para-sempre. Aconteceu tudo num instante, nem era suposto ele estar ali. Mas as coisas do destino são mesmo assim e ele aprendeu a aceitar. Bastou um olhar. E no olhar seguinte qualquer coisa lá no fundo saltou de alegria e fugiu a pedir resgate. Ele não sabe se morreu de amores pelo que ela nunca disse ou pelo que lhe disse naquela primeira noite antes de o beijar. “gosto de ti desde sempre”. Uma parvoíce, vendo as coisas em perspetiva. Gostar não tem nada a ver com tempo. Gostar é maior do que isso tudo. Amar, então, nem se fala. Não se gosta hoje e amanhã se desgosta. É outra grande mentira para abafar desassossegos. Gosta-se e está tudo estragado. Gosta-se sem medidas, sem truques e sem fronteiras. Gostar é infinito. Duas pessoas e infinito. Por isso, quando se beijaram, os ponteiros do relógio ficaram confusos, as estações e os astros entraram em colapso. A noite virou dia, e depois noite, dia mais uma vez, noite e pelo meio ela conseguiu mostrar-lhe um arco-íris e uma mão cheia de pirilampos. O tal infinito a fazer das suas. Passados tantos anos, ela ainda se lembra da manhã seguinte e do preciso momento em que acordou com estilhaços de sol a rasgar-lhe o sorriso pela manhã. Ele acordou muito antes, talvez nunca tenha adormecido, e ficou a amá-la em segredo e a decorar todos os recantos de pele. De mãos dadas sentiram muito medo, de repente, mas fecharam rapidamente a janela e negaram qualquer aviso de fatalidade. Amar é ficar frágil. É sentir um corte de papel a cada batida do coração. Amar é andar com uma peça de porcelana na ponta do nariz e achar que a vida depende daquele tesouro suspenso. Na altura, eram miúdos e queriam tudo. Esgotaram-se como se não houvesse fundo de mar. Passearam na rua como aves raras. Num final de tarde ele pintou o nome deles dentro dum coração, na parede da esquadra, e ela rendeu-se à pirosice. Amar fazia-lhes perigosamente bem e os ingredientes da trama eram dignos dum romance de capa rígida bordeaux. Incendiaram-se até não haver mais chama, por isso, nenhum deles veio à porta dizer adeus. Às tantas era melhor que assim fosse. Ninguém precisava de saber que não houve final feliz. Nem sequer houve final. Houve vida a meter-se ao barulho. E não foram os dias sem comer, nem as fotografias, nem o aperto que virou membro do corpo. Não foi nada disso que o levou a vaticinar que ela foi o grande amor. Ela foi o grande amor, porque só um amor assim ensina que a vida é uma sucessão de mortes. E se lhes sobrevivermos, viveremos para sempre a cada nova vida.

Thursday, February 21, 2013

Qualquer coisa sobre o avesso

A história começa ao contrário. “Eles viveram felizes para sempre até se bastarem um do outro". A eternidade não se traz no bolso como um molhe de chaves. Ela acreditou que assim fosse. Ele, por ela, também. Abandonaram-se lentamente. Juntos eram, talvez, chispa a mais para uma só fogueira. Ela quebrou-o em pedaços. Pequenos, pediu ele, no leito da morte. Mas ela não ouviu. Há muito que o silêncio lhes tinha roubado as palavras. Ele ainda se lembrava do sorriso dela. E ria, sozinho, como quem passa por uma fotografia gasta e pede baixinho que o tempo pare outra vez naquele lugar. Não havia outro remédio. Ou se havia, ela não tinha receita nem recomendação médica. Por isso, quebrou-o em pedaços. Imensos. Ela quebrou-o em ondas do mar. Para todos os dias, da varanda da casa que lhes pertenceu, poder avistá-lo, ao longe, como um náufrago em terra de ninguém. Era da maneira que o tinha perto. Não conhecia outra religião. Ele era o templo, a reza, a sina e o pecado, o início e o fim. E até depois do adeus era impossível dizer adeus. Às vezes, tinha vontade de descobrir outros lugares. Recônditos. Indecifráveis. Lugares secretos onde não havia religião. Mas depressa regressava quando entendia o óbvio. Ele estava-lhe impregnado na alma. Como um melancólico fado que adormece no colo. Passou a odiar o fado e a música. E a ele, de resto. Nos dias em que o ódio estava quase esquecido, uma primavera qualquer trazia-lhe na brisa o cheiro a ondas do mar. E ela passava do ódio ao deixa-me ficar no teu ombro. Matavam saudades. Ridiculamente e apaixonadamente. Eles eram o avesso um do outro. E quem passava na rua virava a cara, para não ver o escândalo a cores. Há ausências que doem mais que bofetadas. Ele teria preferido: mil bofetadas em troca de liberdade. Em troca do ar puro que nunca conheceu. Ela existia, simplesmente, e isso alimentava-o. Para quê respirar quando eram as mãos dela que o levavam porta fora. Ela existia. E isso bastava-lhe. As parvoíces alegres, quando a alegria lá morava, as danças entre o sofá e a cama, as mil e uma coisas que ela inventava só porque sim. Ela era tudo o que ele nunca quis. A sofreguidão e a loucura. As borboletas irritantes na barriga. Os beijos a queimar a pele. O que não se pede com medo que aconteça. Eles aconteceram-se. E desde então, nunca mais se ouviu falar dela. Nem dele. E quem, ao longe ou ao perto, vê o mar, nunca desconfia que é lá onde se afogam e encontram, em segredo.

Saturday, December 15, 2012

Ainda não desisti de te desenhar. Ainda aqui estou, na sombra, à deriva como um navio que desaprendeu as leis do mar. Quando estávamos juntos era mais fácil. Sabia-te de cor. Conhecia todos os fios do teu cabelo e todas as cicatrizes que teimavas em esconder. São lindas. São tuas. Foram minhas, quando deixavas. Eras a minha bailarina, a minha musa, eras a estrela de cinema que querias ser mas nunca tiveste coragem de admitir. Eras a menina má e orgulhosa que gostava de colecionar pecados na bolsa lilás tricotada à medida. Eu sabia disso e mesmo assim perdoava. Perdoava-te as mentiras deliciosas e os azedumes pirotécnicos. Porque o amor é pateta e desacredita-nos. Por isso cá estou, ridiculamente, no quase esboço da tua boca. Não sei precisar se é assim tão pequena quanto rabisco. É a tua boca. O meu templo pagão. A lâmpada mágica de onde saiu o sorriso mais bonito do mundo. O sorriso que levaste contigo quando desapareceste sem deixar rasto. Desenho-te a boca a carvão e beijo-a tantas vezes quantas oiço, ao longe, a tua irritação sobre os apertos fora de horas. Como se o amor tivesse hora marcada para chegar. Deixa-me desenhar o cheiro da tua pele, o calor do teu abraço, o balanço da tua anca. Quero desenhar os segredos que guardas na linha do pescoço. O teu silêncio. A tua voz ao chamar por mim. A tua doce melancolia que desenterra qualquer infância. Quando estamos apaixonados toda a porcaria que rabiscamos é postal de felicidade. Agora há telas em branco, pinceis pendurados na árvore de natal que me obrigaste a comprar, e vazio no fundo do corredor. Agora há tempo. Tempo que não termina. Tempo que sussurra: ‘ela já não mora aqui’. Eu perdoo-te. Vem cá, menina tempestade, vem desassossegar-me. Eu desenho-te e prometo: é a última vez que me meto na frente do comboio. Depois, faço de conta que não te vejo a sair, pé ante pé, e sigo para onde tiver de ser. Nada me espera depois de te encontrar, e perder, cedo demais. Ver-te partir é o bilhete que compramos por mútuo acordo. Do alto deste grande amor, meu amor, declaro: não trocaria nenhum pedaço de vida destroçada por ti por uma qualquer imitação rafeira de vida sem ti.