Saturday, May 28, 2011

Na terra do sempre

És um bruto. E eu sou uma princesa. Tu não sabes, nem sonhas, mas antes de adormecer ainda brinco com a primeira barbie e guardo uma tiara no guarda-jóias. Quase posso jurar que, à noite, é uma abóbora mágica que me leva até à porta de tua casa. Porque só ela sabe o caminho mais rápido para o teu abraço de lua cheia. És um bruto. E não te perdoo teres roubado o sapatinho de cristal dos meus dias azuis. Nem tão pouco me teres rasgado o vestido de tule naquele ímpeto de paixão urgente, que tantas vezes te tira a razão e o bom-senso. És um bruto sem modos e a tua camisa de marinheiro não condiz com o meu calcanhar de porcelana onde, num destes dias, vou marcar a ferros as nossas iniciais entrelaçadas. Tens um jeito trapalhão de andar, mais ainda de me rodar à volta do teu sorriso, que ora se disfarça de lobo mau, ora se esconde atrás do primeiro arbusto. És perigosamente seguro. Mais ainda naqueles instantes relâmpago em que ficas calado à espera que diga o que queres ouvir. Mal tu sabes o tanto que tenho para te dizer (e não digo). Tanto que se imaginasses fugias a sete pés deste labirinto onde nunca nos cansamos de brincar às escondidas. Gostamos demais das apanhadas fulminantes ao virar de esquina. Umas vezes sou eu quem te vê primeiro, e sem medo do escuro te agarro, nas outras és tu quem me assalta num fôlego audaz. És um bruto. E eu sou uma princesa que nada percebe de guerras ou invasões. Não te absolvo desta sentença sem juiz que te aprisionou, sem piedade, ao sol avermelhado das nossas tardes. Não te desculpo, sequer, os tropeções no furacão do meu cabelo ao vento, os desassossegos confidentes pousados no meu peito, as viagens nas asas do meu colo. E não ignoro, jamais, todas as palavras que sussurras ao meu ouvido quando julgas que estou a dormir. Guardo-as a todas, meu amor, no tal guarda-jóias da menina-princesa-mulher a quem saqueaste o coração.


Sunday, May 22, 2011

Não ter asas e saber voar

Não me deixes aproximar (mais). Afasta-te (de vez). Repele-me, esquece-me para sempre e, já agora, tranca o verbo amar no bolso das calças que não usas. Não te quero ver (mais) nem (tão pouco) sentir esse teu cheiro que me atrai e me irrita, me irrita ou me atrai e que, no fim do dia, só me irrita. Não envies sinais de fogo nem acendas fogueiras que não consegues apagar. Deixa-me (de vez). Pendura-me num papagaio e lança-me pelo ar. Eu sei que o vento vai levar-me numa valsa pelas noites de verão. Como tu fazias quando eu amuava e acreditava que o mundo tinha acabado para nós. Impede-me de tropeçar nas fotos felizes e nas cartas encantadas, faz (mais) um esforço e dá-me (outra vez) a mão senão é desta que caio na armadilha do teu sorriso. Bem sabemos que nele se vivem dias sem descanso. És um pecado mortal, uma gula teimosa, um mal-me-quer disfarçado de girassol. E eu, que fui bailarina na palma da tua mão, cansei-me de (tanto) rodar. Enjoei este vício de ti. E queria ter náuseas e tonturas, dizer maledicências, lançar-te um feitiço (talvez). Não consigo fazer mais nada senão desatar (aos poucos) o nó do laço que prende a minha saia ao teu colarinho. E juro-te, meu (quase) querido ex amor, que numa destas manhãs será apenas a saia que encontrarás no fundo da cama.

Wednesday, May 18, 2011

Fogo, cinza e nada

Se as saudades falassem chamavam por ti. E calavam o riso, a primavera, o silêncio, se fosse preciso, para só o teu nome ser ouvido. Até naqueles lugares recônditos onde o céu empurra a terra sem ninguém ver. Tu não sabes mas, hoje, as saudades pegam-se aos dedos como chocolate quente, desfazem-se em pedaços lacrimejantes e queimam. Tento limpá-las, escondê-las, arrumá-las para longe mas elas regressam, galopantes, agora em forma de cinzas. Tomam conta de todos os lugares onde só eu tenho senha de acesso. Invadem sem permissão os esconderijos do corpo e da alma, fazem ninho e teia, fazem cama. Não descansam. Primeiro entranham-se nas coisas, depois em mim, como um manto de pecado vermelho que me deixa nua e menina neste chão vazio onde, numa daquelas noites, fomos um só. Eu resisto, digo para irem embora, imploro e quase choro mas elas teimam em ficar, ao meu lado, como espectadoras de último episódio. Se as saudades falassem chamavam por ti. E diziam-te ao ouvido, meu amor, o que ficou esquecido no abraço que ficou por dar, no beijo que não chegou a ser roubado, na alvorada que acordou sem nós. Hoje não as censuro e deixo-as falar. Pode ser que assim, num dia que não o de hoje, elas esgotem as palavras até não sobrar mais nada.

Nem história para contar. Ponto.

Wednesday, May 11, 2011

Desta vez é para ti

(Afinal) Não és destino. Não és, garanto. És terminal de aeroporto. Tanto quanto sei, és o maior de todos. Pólo de atracção, esfera de influências, gatilho de oportunidades. És o estar a chegar e o quase a partir. Ponto de passagem. Conforto imediato do café que se toma de pé, revista com janela para o mundo, máquina descartável sem modo automático. Vendilhão de fantasias, confidente de promessas, altar de despedidas, albergue de afectos. Vês quem chega e quem se vai embora, por um momento ou para sempre, sem verter uma lágrima. Não te perturbas, não te aproximas, não te incomodas. Tão pouco te alimentas desta matéria agridoce de que são feitos os sonhos. Com a mesma leviandade conquistas quem entra como quem sai, sem nunca revelar o verdadeiro rosto do teu beijo. Não distingues cheiros nem cores, não sabes que a alegria se cola aos dedos como chocolate e que a tristeza queima a língua e a alma. Nos tempos livres jogas à sueca, baralhas e voltas a dar, e na jogada seguinte é dia e pouco do que era te interessa. Ninguém sabe se sofres em silêncio, se cantas no chuveiro ou se tens medo de trovoada. Estás presente além das horas. Mas, às vezes, elas passam-te a perna e a seguir és passado, memória, bilhete no baú das coisas que não voltam mais. És refém de um tempo que não é teu, mas de quem passa e nem se digna em dizer ‘tchau’. És o maior terminal de aeroporto que conheço. E o teu coração ficou esquecido, sem dono, num cacifo cinzento dos perdidos e achados. Estar contigo nem é estar, perdão, é ficar. Ficar por uns minutos, esperar sem adormecer, ficar sem nunca perder de vista o essencial: a hora de embarque para qualquer coisa de bom entre o céu e a terra.

Wednesday, May 04, 2011

Um dia de verão

Tu sais disparado e eu sigo-te num fôlego. ‘Se correres eu corro, meu amor’. À nossa frente temos um campo de girassóis que a todos serve de quadro e a nós de tapete. Hesito, sei lá se te consigo acompanhar ou se o meu coração se perde pelo caminho. Tu adivinhas-me - como sempre - e entrelaças a tua mão na minha. ‘Onde estiveres eu estou, meu amor’. E naquele instante eu percebo que nada mais importa senão isto: as nossas mãos dadas neste tapete de girassóis. Lá atrás, ao fundo, repousa a cidade abandonada sem dó nem saudade. O dia está só a começar. E é um dia de verão.