Friday, March 15, 2013

Disseram-lhe que só no fim da vida se sabia quem tinha sido o grande amor. Com o passar do tempo percebeu que esta era uma grande mentira que se contava para abafar desassossegos. Foi num instante que ele percebeu que ela era a tal. O grande amor. Foi num instante que sentiu que a vida tal como a conhecia tinha acabado e que nada mais seria igual. Porque agora havia ela, ela e o cabelo dela, ela e o cheiro dela, ela por todo lado: ela. Pequenino acidente demasiado irresistível para se escapar ileso. O único grande amor. Ela. Conheceu-a cedo demais, odiou-a por muito tempo, e amou-a até perder a memória. Outras vieram, antes e depois, mas nenhuma comparável a ela. Ninguém roubou tantas estrelas ou plantou girassóis como ela. Nenhum outro amor construiu castelos em territórios sagrados. Provavelmente ela nem deu conta. Agora ainda se encontram, entre cafés transviados e frases de novela das cinco, como se devessem alguma coisa um ao outro. São uma miragem do que foram, juntos, e nada ficou além da melancolia típica de amor-que-podia-ter-sido-para-sempre. Aconteceu tudo num instante, nem era suposto ele estar ali. Mas as coisas do destino são mesmo assim e ele aprendeu a aceitar. Bastou um olhar. E no olhar seguinte qualquer coisa lá no fundo saltou de alegria e fugiu a pedir resgate. Ele não sabe se morreu de amores pelo que ela nunca disse ou pelo que lhe disse naquela primeira noite antes de o beijar. “gosto de ti desde sempre”. Uma parvoíce, vendo as coisas em perspetiva. Gostar não tem nada a ver com tempo. Gostar é maior do que isso tudo. Amar, então, nem se fala. Não se gosta hoje e amanhã se desgosta. É outra grande mentira para abafar desassossegos. Gosta-se e está tudo estragado. Gosta-se sem medidas, sem truques e sem fronteiras. Gostar é infinito. Duas pessoas e infinito. Por isso, quando se beijaram, os ponteiros do relógio ficaram confusos, as estações e os astros entraram em colapso. A noite virou dia, e depois noite, dia mais uma vez, noite e pelo meio ela conseguiu mostrar-lhe um arco-íris e uma mão cheia de pirilampos. O tal infinito a fazer das suas. Passados tantos anos, ela ainda se lembra da manhã seguinte e do preciso momento em que acordou com estilhaços de sol a rasgar-lhe o sorriso pela manhã. Ele acordou muito antes, talvez nunca tenha adormecido, e ficou a amá-la em segredo e a decorar todos os recantos de pele. De mãos dadas sentiram muito medo, de repente, mas fecharam rapidamente a janela e negaram qualquer aviso de fatalidade. Amar é ficar frágil. É sentir um corte de papel a cada batida do coração. Amar é andar com uma peça de porcelana na ponta do nariz e achar que a vida depende daquele tesouro suspenso. Na altura, eram miúdos e queriam tudo. Esgotaram-se como se não houvesse fundo de mar. Passearam na rua como aves raras. Num final de tarde ele pintou o nome deles dentro dum coração, na parede da esquadra, e ela rendeu-se à pirosice. Amar fazia-lhes perigosamente bem e os ingredientes da trama eram dignos dum romance de capa rígida bordeaux. Incendiaram-se até não haver mais chama, por isso, nenhum deles veio à porta dizer adeus. Às tantas era melhor que assim fosse. Ninguém precisava de saber que não houve final feliz. Nem sequer houve final. Houve vida a meter-se ao barulho. E não foram os dias sem comer, nem as fotografias, nem o aperto que virou membro do corpo. Não foi nada disso que o levou a vaticinar que ela foi o grande amor. Ela foi o grande amor, porque só um amor assim ensina que a vida é uma sucessão de mortes. E se lhes sobrevivermos, viveremos para sempre a cada nova vida.