Friday, December 30, 2011

Qualquer coisa sobre tudo

Foi como uma chapada. Uma chapada seca, inadvertida e barulhenta. Das que fere a mão, o rosto e deixa a sangrar para sempre qualquer coisa cá dentro. Ela apareceu-lhe como um trovão que deita abaixo a luz, a cidade, o mundo e as estrelas. Antes dela havia preto e branco e mais nada. O resto era tempo. Tempo e uns quantos lugares onde ele não tinha vergonha de se sentir sozinho. Havia margens e passeios, calçadas portuguesas e avenidas de alcatrão. Antes dela havia riso sem vontade e vontade de saber como era o riso, de verdade. Vestida de vontade, ela apresentou-lhe o riso, de verdade. Depois do riso mostrou-lhe todas as outras coisas. Porque existem sempre as outras coisas. Coisas sem nome por serem mesmo isso, exclusivas. E ela guardava-as, a todas, na roda da saia-girassol que uns dias dançava ao vento e noutros passeava à chuva. Antes dela não havia medo. Só certezas, porque sins encavalitados nas horas dos dias que sucedem as noites e histórias. Muitas histórias para fingir que a vida dá corda aos sonhos. Ele nunca percebeu se a convidou a entrar ou se foi ela quem forçou a fechadura. Se foi ela, com aquela doçura perigosa de quem sabe para onde vai, que encontrou a chave, a bússola, a senha-secreta daquele fundo de mar. Mas isso não importa. Porque isso é só o início de tudo. E depois do início, depois do acidente, dos feridos e das feridas, depois dos mirones e de todas as outras catástrofes naturais ela mantém-se aqui-ali como no primeiro dia. A brincar no meio do labirinto como quem não tem pressa para apanhar a vida. Porque a vida se calhar é aquilo, é tudo aquilo que ela segura entre o cabelo e o sorriso, enquanto se passeia com ares de princesa-feiticeira. Ela mantém-se. Imperturbável. A achar graça aos muros, às trepadeiras de silêncio e musgo que ele plantou com tanto cuidado. A pintar tudo de vermelho e a falar alto sem medo de acordar os vizinhos ‘olha, olha, vês como fica bem assim?’, como se a pergunta quisesse saber da resposta para alguma coisa. ‘Claro que quero saber’. Como se fosse possível, ou suportável, desviar o olhar e fazer de conta que ela ali não está, ou aqui, a virar tudo do avesso. A dar sentido a tudo. Ele sabe lá. Pior do que o rosto a latejar da chapada, está o coração. Pior do que os arranhões, pior do que o fim dos sentidos obrigatórios, pior do que o vermelho a galgar-lhe muros e trepadeiras, pior está o coração. Desabituado destas coisas exclusivas, o coração dele não sabe o que fazer para ter fôlego de volta, a razão, o sangue de volta, o ritmo, por favor. Porque agora há o riso. Não um riso qualquer. Agora há o riso dela. Que, assim de repente, é só o riso mais bonito do mundo. E o coração pára para ver e devorar, para não esquecer e sentir saudades. O coração e um frio estranho na barriga.

‘um dia, vou ser feliz contigo'
‘hoje é o dia, meu amor’.

Tuesday, December 13, 2011

Qualquer coisa sobre feitiços

Ela visita-o de madrugada, a horas tardias e famintas, como se dum ritual se tratasse. Assim acontece desde a primeira noite em que prometeram ficar juntos para sempre. Ou se não prometeram, queriam muito ter prometido. Às vezes, a vida não precisa de ser falada para ser verdade. Nem tem como escapar às inevitabilidades dos quereres. Que, sem querer, roubam fôlego, chão e lua cheia e profanam os territórios sagrados das certezas absolutas. No início eles resistiram. Fecharam-se em copas, espadas e valetes, fintaram sinais, semáforos e evidências, esconderam as provas do crime, meteram trancas à porta e ao coração. Esperaram que o mundo continuasse igual, mas o mundo nunca mais foi o mesmo e sucumbiram. Por isso, e sem pedir licença, ela entra-lhe pelos sonhos adentro. Como um arco-íris vestido de preto e branco. Um jogo de xadrez de linhas curvas que ganha, sempre, sem precisar de dizer xeque-mate. Não é a vitória que interessa, afinal, mas as linhas onde eles se movem. Os dois. Onde se movem e dançam e se esgotam antes do dia nascer. Onde são gaivotas e marés, alquimistas de vontades, salteadores de gestos e segredos, laço e gaiola aberta num sopro, queda livre e rede junto à relva, compasso de pulso sem ritmo. Onde são mais do que se adivinham quando ela, pé ante pé, o visita de madrugada e ele, sem a perder de vista, desenha um céu estrelado no fundo da cama.

Thursday, December 08, 2011

A seguir, quem sabe

Já estou pronta. Para quê? Espera. Estou quase. Estou quase lá. Aonde? Mais devagar, por favor, senão coro e a magia fica borratada. Mas eu gosto de ti assim. Deixa-me preparar o cenário. Esqueci-me de comprar as fitas de seda, os laços, os brilhos que aparecem no escuro. Não passei no mercado, na florista, não vi notícias nem comunicados oficiais. Mesmo assim estou pronta. O vestido podia ser novo, mas não é, os saltos podiam mais baixos, mas não são. As cores deviam ser mais minhas, menos dos outros, mais tuas também, mas descubro que afinal podem ser perfeitas desse jeito meio tosco. Estás preparado? Para quê? Tens essa mania deliciosa de querer adivinhar o fim do jogo antes do sinal da partida. Vamos por aqui então. E desta vez dá-me a mão, para o meu corpo não ousar vacilar. Porquê? Porque ele é mais teu do que as aparências denunciam. Sabias? Pega na chave, no casaco, traz o lenço, a promessa, o achado que só tu sabes encontrar. E hoje, só hoje, amanhã quem sabe, vamos ser felizes. Eu estou pronta, amor, se tu também estiveres.