Monday, September 26, 2011

Tenho vontades que me superam

E desejos que me ultrapassam. Querer-te todos os dias, trazer-te para a minha cama, à noite. Mesmo quando não estás perto. Ver-te nas esplanadas onde me aquieto, nas vistas de mar aonde o sonho se cruza com a vida, nas beiras da estrada, nos caminhos que ainda não levam a lugar algum. Dar-te a mão e dizer-te coisas novas que aprendi duma só vez. Falar-te em francês e levar-te a passear de balão. Sossegar-te tormentos e desalentos, fazer-te acreditar que é mesmo verdade e que o mundo espera por um milagre. Que, às vezes, acontece. Pedir-te um ou dois beijos entre um gelado de morango e baunilha. E no fim, pedir-te outro. Receber-te num abraço antes da campainha. Ter-te ao meu lado quando a saudade aperta e ajudar-te a levá-la para longe daqui. Dar-te colo e chão, sofá no inverno e terraço no verão. Horas para contar tudo, minutos de urgências para agarrar. E não perder. Tenho vontades que me superam. Tantas mais. Se as soubesses, coravas.

Saturday, September 24, 2011

Qualquer coisa sobre o outono

No início havia medo. Medo em pedaços. Medo de todas as cores. Em forma de gente. E de seta que não erra o alvo. Ninguém a avisou mas ela sabia, sentia, que só podia ser medo. Aprendeu a respeitá-lo. Conquistou-lhe a atenção, deu-lhe algum afecto e umas quantas histórias de embalar. Ele nunca lhe deu nada. Nem ela ousou pedir. Bastou um primeiro olhar para perceber o que, mais tarde, virou evidência: o medo alimenta-se dos outros, nunca dele próprio. E nalgumas noites devora corações. Ela preveniu-se da investida assassina e ao pôr-do-sol começou a trancar o coração a sete chaves. E o corpo dela não tardou a decifrar as intermitências do medo. Aprendeu a gostar de cada um dos pedaços. A adivinhar o amanhecer de cada cor. Até ao dia em que o medo desapareceu e o dia acordou em silêncio. Veio então o prazer. E ela, ainda melancólica com o adeus sem despedida, pintou o céu de azul. No segundo dia vestiu-se de vermelho e brincou às escondidas com o prazer até se cansar e adormecer, exausta, num banco de jardim. Algum tempo mais tarde compreendeu que o prazer jamais se divide em pedaços. É um corpo maciço e livre. Caleidoscópio de emoções palpáveis e galopantes. Metade sonho, metade perdição. Labirinto de dúvidas e senãos. Ela distraía-se muitas vezes com o prazer e só nos dias cinzentos voltava a si. Ou ao que restava de si. Dava-lhe tudo. E quanto mais lhe dava mais ele pedia. E ela dava mais ainda. Não sabia resistir-lhe. Onde dantes havia caminho de terra apodrecida pelo medo nasceu um campo de girassóis. E o silêncio fez-se riso. Não o dela, mas o deles. O riso perfeito do prazer dentro dela. Numa noite de estrelas no chão ela deixou o coração à solta e, num impulso, o prazer tomou-o de assalto. Sem saber o que fazer, agarrou-o bem forte e matou-o por asfixia. Foi então que ela descobriu a solidão. E a solidão deu-lhe tempo para sarar as feridas do medo e do prazer. Deu-lhe fôlego e meio da ponte. Parar, sentar e não desejar outro lugar senão aquele: onde a vida se permite interromper por tempo indeterminado. A solidão deu-lhe tudo. Um começar de novo. E ela, marinheira de primeira viagem, gostou do horizonte oferecido de presente. Ao longe, avista um cheiro que não conhece. Talvez de amor. Mas ela não sabe. Nem quer saber. A solidão ensinou-a a esperar. E ela gosta de ser boa aluna.

Tuesday, September 20, 2011

Intimidades II

'e se um dia, não amanhã nem depois de amanhã, eu acordar ao teu lado?'
'sim.'
'vais gostar de mim despenteada e mal humorada?'
'provavelmente não.'
'é a primeira coisa que vais dizer?'
'não.'
'então?'
'tostas ou cereais?'
'e mais?'
'na sala ou na cama?'
'e sabes o que vou responder?'
'despenteada e mal humorada vais dizer que não gostas de pequeno-almoço'
'provavelmente sim. mas, nessa altura, já o estás a preparar.'


a intimidade, vista de perto, é uma colecção de pequenas coisas que, separadas, são pedaços de nada mas juntas dão sentido às maiores.

Sunday, September 18, 2011

Amor à minha moda

1 dose de entrega
Dose e meia de querer receber
1 litro de paciência
Meio litro de fantasia
Meio litro de razão

1 quilograma de loucura
900 gramas de atrevimento

500 gramas de medo
2 beijos
1 abraço

Física e química qb
Sal e pimenta qb
Molho agridoce


Misturar primeiro a entrega e o querer receber num recipiente vazio. Adicionar, devagar, os outros ingredientes. Juntar, intercaladamente, a física e a química. Temperar com sal e pimenta conforme o gosto. Envolver com molho agridoce. Deixar marinar e verter para uma forma sorriso. Levar ao forno previamente aquecido numa temperatura altíssima. Não substituir o forno pelo microondas. Saber esperar. Retirar o preparado do forno antes de queimar. Provar em doses moderadas. Repetir se a vontade assim ditar. Deitar fora depois de arrefecer. Não esquentar.


P.S. O Amor tem prazo de validade. Esta receita também.


Wednesday, September 14, 2011

Trabalho de casa

E como se vive depois de ti?

Não me mostres a equação. Dá-me a senha e, por via das dúvidas, a contra-senha. A sina, a solução, a chave mestra, a fórmula sagrada. Oferece-me a fuga de ti. Aponta para a recta que não se cruza com o teu cheiro, afasta as estrelas, apaga a lua, mata o sol e espalha as cinzas num mar que desconheça a forma das tuas mãos. Permite-me não te querer mais. Mesmo que me queiras, ainda mais. Faz de conta que és rei e ordena que me expulsem do reino por desacato à autoridade. Que és tu, meu amor. Infringe todas as regras e atravessa a passadeira em hora de ponta. Obriga-me a pagar uma multa por excesso de ti. Segue os sentidos – certos – e obrigatórios e deixa-me ficar numa esplanada sem vista para ti. Ajuda-me a deitar ao lixo os desperdícios que por aqui sobraram entre os pequenos almoços e as madrugadas-lareira. Ensina-me o que desaprendi sobre os outros. Aqueles que nunca me interessaram. Traduz as palavras difíceis que não dependem de nós. Ajeita-me o cabelo e diz-me, olhos nos olhos, quem, depois de ti, pode entrar só porque sim. Dá-me uma bússola que aponte para o norte, e não para o teu chão. Conta-me a história dum primeiro beijo. Procura o meu coração e pede-lhe ao ouvido que volte para casa. Fala-me de tesouros no fundo da alma, segredos de cabeceira, cartas que chegam ao destino. Diz-me em que lugar escondo o nosso riso, a tua poesia e a minha prosa. O que faço à música? Onde tranco o silêncio de um abraço tatuagem. O que faço ao amor? Ao meu amor que, sem ti, virou vagabundo. Agora explica-me, por favor. Como se vive depois de ti?

Tuesday, September 13, 2011

Verdades II

‘E se nos cansarmos? não agora, um dia.
e se nos cansarmos de nós, um dia?’

‘e se nos vivermos?

(assim, se esse dia chegar,
é porque não há mais nós para viver)'

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