Wednesday, March 23, 2011

Coisas que acontecem

O que acontece é que te vi antes de te conhecer. Estava à tua espera como quem espera a primavera depois de um longo inverno. Como um turista que espera o comboio que o leva de volta a casa, ou ao tal destino de sonho, tanto faz. Nunca percebi a diferença entre os encontros e as despedidas. Já dizia o poeta que chegar e partir são só dois lados da mesma viagem, se calhar são mesmo e o mais importante é o compasso entre ambos. Pressenti-te quando existias apenas no horizonte, quando eras caleidoscópio e tinhas os formatos e as cores que eu quisesse. E enquanto a cidade via árvores, ruas, bancos de jardim e passeios, eu via-te a ti. Não te sabia os traços do rosto nem o formato das rugas, mas via-te. Às vezes via-te tão perto, mas tão perto, que a claridade do teu sorriso quase me cegava e se confundia com os primeiros raios de sol. Não errei. Antes de te conhecer já estavas em todo o lado, até nos lugares silenciosos e secretos onde não cabe mais nada senão a memória dos fantasmas de um passado que fingimos desconhecer. Amei-te, talvez, amei-te sem saber ao certo o que era o amor (ou o que lhe quiseres chamar). Amei-te sem ter mão nesta coisa insana que corre mais rápido do que as pernas, a esta ferida aberta e sem cura, a esta urgência de viver além das horas porque o amor, quando chega, vem por tempo indeterminado. Até ao dia que acaba, também, por tempo indeterminado. Sabes a que sabe a tua ausência, amor? A falta de ar. A tua ausência, amor, é uma corda ao pescoço. Um ar rarefeito ou quase nulo. A tua ausência é vazio e vácuo e nenhuma história para contar. A tua ausência é um carrasco que mata aos bocadinhos, um castigo sem fim à vista, uma tortura, uma penitência de silêncio. A tua ausência entra-me pelo corpo adentro como uma labareda incandescente que tatua o teu nome em todos os pedacinhos por onde passa. Como se eu fosse capaz de esquecê-lo. Como se conseguisse, sequer, esquecer as letras que são mais do que o teu nome. Para que saibas: essas letras, que te dão nome de carne e osso, são mais do que isso. Essas letras, juntas, são o meu grito de saudade que ecoa por este mundo que ficou órfão de nós.

Sunday, March 20, 2011

Sem bússola

Eu sou norte, tu apontas para sul. Às vezes os astros conspiram e tropeçamos um no outro na terra que não conhece rosa-dos-ventos. Eu brinco com a semântica, tu desconfias das palavras que não sabes pronunciar. Falas devagar, descansas no silêncio das entrelinhas, ris de quem se julga dono da razão. Eu gosto de dizer disparates. Tu gostas tanto de disparates como de mim. Ou mais de mim, não sei e não faz mal. Tu és avesso a perguntas, eu evito as coisas banais. Eu sou menina disfarçada de mulher. Tu és o homem que me segura pela mão e me deixa ser quem eu quiser. Contigo sou estrela e céu azul. Sou sol de verão. Sou o que se vê deste lado da janela, sou também o parapeito onde te pousas e descansas. Contigo não há amarras, nem prisões, nem quartos trancados no fundo do corredor. Não há ‘talvez um dia, quem sabe’. Não há medos. Há urgências e coisas que fazem sentido. Há o sim vestido de juíz e o arco-íris que sai à rua sem chuva. Contigo não há tempo a perder, só dias para viver e noites sem almofada. Tu és as reticências que esperam pacientemente pelo meu ponto final. Eu sou prosa, tu poesia. Juntos fazemos magia e eu sei que, um dia, seremos história de encantar. Somos salteadores de sonhos. Brincamos com o sexto sentido e fazemos castelos na areia. Não temos vergonha. Eu sou daqui, tu não és de lado nenhum. E aos domingos fazemos planos para ter uma casa na lua. Eu sou fogo e tu fluis como a água. E quando escorregas, amor, é a minha mão que te leva de regresso a casa. Tenho a certeza: nós os dois somos mais que dois. Somos três, quatro, cinco, se calhar somos o mundo inteiro à nossa volta. Há dias em que somos um beijo mais que perfeito. Doutra coisa tenho a certeza: enquanto houver ‘eu’ e ‘tu’ o verbo amar nunca mais se sentirá sozinho.