Friday, June 07, 2013

‘Tu não sabes o que dizes’. E ela não sabia, realmente, porque vivia de gestos e ele, primeiro, descobriu as palavras. Cedo percebeu que preferia a companhia dos sinónimos, antónimos e predicados à das pessoas. Era um homem de distâncias e de manter à distância. Estudou códigos linguísticos, equações matemáticas, algoritmos e esquemas lógicos, devorou romances à procura da definição exata para a primeira pessoa do plural. Nunca escreveu uma linha sobre estes assuntos e concluiu, anos mais tarde, que depois das certezas universais existem todas as outras coisas. O medo e a liberdade. A felicidade suprema da partilha. As coisas escorregadias, preciosas e perigosas. Foi mais ou menos nessa altura que a encontrou. E percebeu, num instante, que nem toda a poesia do mundo serviria para decifrar o enigma daquele olhar azul, que lhe aconteceu no verão mais quente de sempre. Desapegou-se das palavras, das lógicas e das razões. Ela entrou-lhe porta adentro sem dar tempo para arrumar a casa e o coração. E às tantas é mesmo assim. O caos e a fragilidade a conviverem debaixo do mesmo teto. A paixão, a sofreguidão e a entrega de mãos dadas com a saudade e a perda. A melodia perfeita e profana que não se encontra nas histórias. Porque o amor é um segredo, que se conta ao ouvido.

Friday, March 15, 2013

Disseram-lhe que só no fim da vida se sabia quem tinha sido o grande amor. Com o passar do tempo percebeu que esta era uma grande mentira que se contava para abafar desassossegos. Foi num instante que ele percebeu que ela era a tal. O grande amor. Foi num instante que sentiu que a vida tal como a conhecia tinha acabado e que nada mais seria igual. Porque agora havia ela, ela e o cabelo dela, ela e o cheiro dela, ela por todo lado: ela. Pequenino acidente demasiado irresistível para se escapar ileso. O único grande amor. Ela. Conheceu-a cedo demais, odiou-a por muito tempo, e amou-a até perder a memória. Outras vieram, antes e depois, mas nenhuma comparável a ela. Ninguém roubou tantas estrelas ou plantou girassóis como ela. Nenhum outro amor construiu castelos em territórios sagrados. Provavelmente ela nem deu conta. Agora ainda se encontram, entre cafés transviados e frases de novela das cinco, como se devessem alguma coisa um ao outro. São uma miragem do que foram, juntos, e nada ficou além da melancolia típica de amor-que-podia-ter-sido-para-sempre. Aconteceu tudo num instante, nem era suposto ele estar ali. Mas as coisas do destino são mesmo assim e ele aprendeu a aceitar. Bastou um olhar. E no olhar seguinte qualquer coisa lá no fundo saltou de alegria e fugiu a pedir resgate. Ele não sabe se morreu de amores pelo que ela nunca disse ou pelo que lhe disse naquela primeira noite antes de o beijar. “gosto de ti desde sempre”. Uma parvoíce, vendo as coisas em perspetiva. Gostar não tem nada a ver com tempo. Gostar é maior do que isso tudo. Amar, então, nem se fala. Não se gosta hoje e amanhã se desgosta. É outra grande mentira para abafar desassossegos. Gosta-se e está tudo estragado. Gosta-se sem medidas, sem truques e sem fronteiras. Gostar é infinito. Duas pessoas e infinito. Por isso, quando se beijaram, os ponteiros do relógio ficaram confusos, as estações e os astros entraram em colapso. A noite virou dia, e depois noite, dia mais uma vez, noite e pelo meio ela conseguiu mostrar-lhe um arco-íris e uma mão cheia de pirilampos. O tal infinito a fazer das suas. Passados tantos anos, ela ainda se lembra da manhã seguinte e do preciso momento em que acordou com estilhaços de sol a rasgar-lhe o sorriso pela manhã. Ele acordou muito antes, talvez nunca tenha adormecido, e ficou a amá-la em segredo e a decorar todos os recantos de pele. De mãos dadas sentiram muito medo, de repente, mas fecharam rapidamente a janela e negaram qualquer aviso de fatalidade. Amar é ficar frágil. É sentir um corte de papel a cada batida do coração. Amar é andar com uma peça de porcelana na ponta do nariz e achar que a vida depende daquele tesouro suspenso. Na altura, eram miúdos e queriam tudo. Esgotaram-se como se não houvesse fundo de mar. Passearam na rua como aves raras. Num final de tarde ele pintou o nome deles dentro dum coração, na parede da esquadra, e ela rendeu-se à pirosice. Amar fazia-lhes perigosamente bem e os ingredientes da trama eram dignos dum romance de capa rígida bordeaux. Incendiaram-se até não haver mais chama, por isso, nenhum deles veio à porta dizer adeus. Às tantas era melhor que assim fosse. Ninguém precisava de saber que não houve final feliz. Nem sequer houve final. Houve vida a meter-se ao barulho. E não foram os dias sem comer, nem as fotografias, nem o aperto que virou membro do corpo. Não foi nada disso que o levou a vaticinar que ela foi o grande amor. Ela foi o grande amor, porque só um amor assim ensina que a vida é uma sucessão de mortes. E se lhes sobrevivermos, viveremos para sempre a cada nova vida.

Thursday, February 21, 2013

Qualquer coisa sobre o avesso

A história começa ao contrário. “Eles viveram felizes para sempre até se bastarem um do outro". A eternidade não se traz no bolso como um molhe de chaves. Ela acreditou que assim fosse. Ele, por ela, também. Abandonaram-se lentamente. Juntos eram, talvez, chispa a mais para uma só fogueira. Ela quebrou-o em pedaços. Pequenos, pediu ele, no leito da morte. Mas ela não ouviu. Há muito que o silêncio lhes tinha roubado as palavras. Ele ainda se lembrava do sorriso dela. E ria, sozinho, como quem passa por uma fotografia gasta e pede baixinho que o tempo pare outra vez naquele lugar. Não havia outro remédio. Ou se havia, ela não tinha receita nem recomendação médica. Por isso, quebrou-o em pedaços. Imensos. Ela quebrou-o em ondas do mar. Para todos os dias, da varanda da casa que lhes pertenceu, poder avistá-lo, ao longe, como um náufrago em terra de ninguém. Era da maneira que o tinha perto. Não conhecia outra religião. Ele era o templo, a reza, a sina e o pecado, o início e o fim. E até depois do adeus era impossível dizer adeus. Às vezes, tinha vontade de descobrir outros lugares. Recônditos. Indecifráveis. Lugares secretos onde não havia religião. Mas depressa regressava quando entendia o óbvio. Ele estava-lhe impregnado na alma. Como um melancólico fado que adormece no colo. Passou a odiar o fado e a música. E a ele, de resto. Nos dias em que o ódio estava quase esquecido, uma primavera qualquer trazia-lhe na brisa o cheiro a ondas do mar. E ela passava do ódio ao deixa-me ficar no teu ombro. Matavam saudades. Ridiculamente e apaixonadamente. Eles eram o avesso um do outro. E quem passava na rua virava a cara, para não ver o escândalo a cores. Há ausências que doem mais que bofetadas. Ele teria preferido: mil bofetadas em troca de liberdade. Em troca do ar puro que nunca conheceu. Ela existia, simplesmente, e isso alimentava-o. Para quê respirar quando eram as mãos dela que o levavam porta fora. Ela existia. E isso bastava-lhe. As parvoíces alegres, quando a alegria lá morava, as danças entre o sofá e a cama, as mil e uma coisas que ela inventava só porque sim. Ela era tudo o que ele nunca quis. A sofreguidão e a loucura. As borboletas irritantes na barriga. Os beijos a queimar a pele. O que não se pede com medo que aconteça. Eles aconteceram-se. E desde então, nunca mais se ouviu falar dela. Nem dele. E quem, ao longe ou ao perto, vê o mar, nunca desconfia que é lá onde se afogam e encontram, em segredo.