Friday, November 26, 2010

Liberdade

andam loucas as meninas dos meus olhos. correm porta fora em desatino, de mão dada e a sorrir, teimam em rodopiar, livres e enfeitiçadas, no jardim do teu sorriso (até nos dias em que não estás em casa). é vê-las assim, loucas, com vestidos cor-de-rosa, caracóis ao vento, lábios lambuzados da gelatina de morango que lhes ofereces às escondidas. nem quando as chamo à noitinha obedecem, batem o pé, amuam, fazem figas e pedem aos deuses aos orixás aos oxalás para ficar mais um bocadinho, aninhadas, no calor do teu abraço.

(e sabes que mais? não as censuro.)

Sunday, November 21, 2010

Mãos dadas

és um bom lugar para ficar.

espera (desculpa-me a imprecisão, a falta de jeito para coisas literais, o embaraço quando falo de ti) és o melhor lugar para ficar.

lugar onde o sol não tem medo da chuva, nem do vento, nem da ameaça de trovoada. lugar de risos falantes, de abraços que se desfazem em mel, de segredos junto ao ouvido, de sonhos que não se perdem pelo caminho. lugar que encontra o destino. lugar de acasos inesperados, de frio na barriga, de cócegas da nuca até aos pés, de sobremesa depois do almoço, de comboio que não se atrasa.

lugar onde o espelho reflecte ternura. lugar de inocência e faz-de-conta, de chocolate quente que brinca com a língua, de roda gigante no centro da feira popular. és também lugar de mistério. de lua adormecida em quarto crescente, de curva que não sabemos aonde termina, de rua sem saída. és fôlego, suspiro, chispa. és lugar de gesto. de mar que corre para a praia de mão dada com as marés, ora cheias ora vazas. de areia que se faz estrada e não quer saber de cruzamentos. de brisa a cheirar a outono, de lareira que se acende num domingo à tarde, de manga-curta que sai à rua no inverno.

(ouve bem, e não duvides)

amor,
és o melhor lugar para ficar.


Wednesday, November 17, 2010

Noutra vida

cá estou eu, no fim do labirinto, mas contra todas as expectativas não te encontro à minha espera. arranjei-me a preceito, tratei das unhas, dos pés, dos cabelos, pus o perfume que mais gostas, calcei os sapatos com laço de veludo que tanto me magoam, vê lá tu, não me esqueci de passar a ferro o vestido guardado para as grandes ocasiões. nem sinal de ti. não me lembro do caminho até cá chegar, tamanha era a pressa, nem se deixei as chaves na porta de casa. vim a correr, percebes, logo eu que sempre fui avessa a maratonas. acotovelei o vizinho, o porteiro, o senhor da padaria, porque não quis chegar de mãos a abanar e fui ainda buscar os pãezinhos de leite que em tempos nos acordavam nas manhãs de sábado. lembras-te? lembras-me? nem sei mais se te lembras. dos pãezinhos, do ritual cama-sofá-cama que se arrastava além das horas, do esquecimento das coisas de adultos, das mãos-dadas a entrar no duche que virava banho de imersão. dos ralhetes que me davas por gastarmos muita água, dos risos felizes até ao tecto, das brincadeiras com bolas de sabão, das minhas costas que reclamavam um beijo teu, junto ao ombro, quando se queriam despedir da preguiça. dos meus passeios pela casa com a tua camisa da noite anterior cantarolando qualquer coisa imperceptível que só nós sabíamos o que era. do jogo da apanhada entre a cozinha e o corredor quando antecipavas que te tinha roubado também os chinelos, as meias, a dignidade. mal sabia eu que, afinal, eras tu o ladrão que de mansinho se apoderava de todos os pedacinhos do meu corpo, órgãos e entranhas, não poupando sequer o coração para contar a nossa história. levaste-me tudo, levaste tudo o que era bom, e nem as paredes que pintamos de violeta convencem o arco-íris a aparecer depois da chuva. o mundo continua a girar, atreve-se a continuar a girar, e a mim só me apetece sair de fininho para outra vida que não esta. sim, esta vida que deixaste vazia. já para não falar do silêncio insustentável da tua ausência, deste silêncio que abafa qualquer eco ou som, incluindo aqueles que me procuram de madrugada quando a cidade fica deserta. cá estou eu, no fim do labirinto, e mais uma vez o teu silêncio se pronuncia. parece-me que o oiço dizer alguma coisa, se calhar quer avisar-me que perdeste o comboio ou o metro ou o avião. as tuas desculpas que em tempos tiveram graça agora soam a fado. não importam mais. e enquanto o silêncio se desfaz em riso, eu atiro para longe os pães, arranco o casaco, o cachecol, os brincos, as pulseiras, o relógio, amaldiçoo e tiro os sapatos que tanto me magoam. de repente, a chapada, dou-me conta das lágrimas grossas de cansaço e rímel que teimam em cair e a manchar de negro o chão branco de porcelana e irrito-me de vez. chega. digo ‘basta’ alto e a bom som, e até o silêncio da tua ausência se cala para ouvir. basta. prefiro viver com muito pouco, do que quase viver contigo.

Friday, November 05, 2010

Final Feliz

julgava-me capaz de tudo. ares de princesa, corpo de menina-mulher, jeitos de ninfa inocente, provocações de diva. guardava na palma da mão a vontade de conquistar o mundo e de ser quem quisesse. sem esperas, nem demoras. sentia-me altiva, debruçada numa torre de marfim, protegida de duendes e gnomos dos contos de fadas, recostada na cadeira forrada a veludo vermelho. chamei-me de única, quis o sol só para mim, tomei banhos de mar fora de horas na companhia da lua. fiz-me de inteira e perdi-me no labirinto das grandes certezas que há no mundo. enfeitei-me de anjo, de céptica, de descrente. acreditei só na verdade que os meus olhos ensinavam, nos aromas que os meus lábios provavam, na areia quente que os meus pés podiam conhecer. e gostar. fiz-me também de sábia, contadora das histórias dos outros, usurpadora de todos os espaços vazios. ri-me até me fartar do riso, trocei da semântica da coisa chamada felicidade, mandei calar os vendilhões de sonhos.

até tu chegares.


vieste sem cavalo branco, montado na fatalidade da madrugada que acorda em alvorada. inacessível, inevitável, intenso. como só tu podes ser. ousado. mostraste-me, sem te pedir, que uma bússola também se zanga com o norte, e que o caminho faz-se a andar, mesmo quando há neblina a esconder o horizonte. pediste silêncio para ouvir os trovões e as gotas de chuva a encontrar chão. falaste baixinho para salvar o momento do barulho das nossas vozes. decidiste o que era ou não importante, fizeste um decreto-lei sobre o certo, trancaste o errado num baú. deitaste fora a chave. cantaste à lareira um samba sobre abandono, rabiscaste umas notas de amor para sempre num guardanapo de papel. e queimaste-as. esbarraste nos meus olhos e correste porta fora. sem parar, nem hesitar. como só tu podes fazer.

não voltaste.
(adeus).