Wednesday, November 17, 2010

Noutra vida

cá estou eu, no fim do labirinto, mas contra todas as expectativas não te encontro à minha espera. arranjei-me a preceito, tratei das unhas, dos pés, dos cabelos, pus o perfume que mais gostas, calcei os sapatos com laço de veludo que tanto me magoam, vê lá tu, não me esqueci de passar a ferro o vestido guardado para as grandes ocasiões. nem sinal de ti. não me lembro do caminho até cá chegar, tamanha era a pressa, nem se deixei as chaves na porta de casa. vim a correr, percebes, logo eu que sempre fui avessa a maratonas. acotovelei o vizinho, o porteiro, o senhor da padaria, porque não quis chegar de mãos a abanar e fui ainda buscar os pãezinhos de leite que em tempos nos acordavam nas manhãs de sábado. lembras-te? lembras-me? nem sei mais se te lembras. dos pãezinhos, do ritual cama-sofá-cama que se arrastava além das horas, do esquecimento das coisas de adultos, das mãos-dadas a entrar no duche que virava banho de imersão. dos ralhetes que me davas por gastarmos muita água, dos risos felizes até ao tecto, das brincadeiras com bolas de sabão, das minhas costas que reclamavam um beijo teu, junto ao ombro, quando se queriam despedir da preguiça. dos meus passeios pela casa com a tua camisa da noite anterior cantarolando qualquer coisa imperceptível que só nós sabíamos o que era. do jogo da apanhada entre a cozinha e o corredor quando antecipavas que te tinha roubado também os chinelos, as meias, a dignidade. mal sabia eu que, afinal, eras tu o ladrão que de mansinho se apoderava de todos os pedacinhos do meu corpo, órgãos e entranhas, não poupando sequer o coração para contar a nossa história. levaste-me tudo, levaste tudo o que era bom, e nem as paredes que pintamos de violeta convencem o arco-íris a aparecer depois da chuva. o mundo continua a girar, atreve-se a continuar a girar, e a mim só me apetece sair de fininho para outra vida que não esta. sim, esta vida que deixaste vazia. já para não falar do silêncio insustentável da tua ausência, deste silêncio que abafa qualquer eco ou som, incluindo aqueles que me procuram de madrugada quando a cidade fica deserta. cá estou eu, no fim do labirinto, e mais uma vez o teu silêncio se pronuncia. parece-me que o oiço dizer alguma coisa, se calhar quer avisar-me que perdeste o comboio ou o metro ou o avião. as tuas desculpas que em tempos tiveram graça agora soam a fado. não importam mais. e enquanto o silêncio se desfaz em riso, eu atiro para longe os pães, arranco o casaco, o cachecol, os brincos, as pulseiras, o relógio, amaldiçoo e tiro os sapatos que tanto me magoam. de repente, a chapada, dou-me conta das lágrimas grossas de cansaço e rímel que teimam em cair e a manchar de negro o chão branco de porcelana e irrito-me de vez. chega. digo ‘basta’ alto e a bom som, e até o silêncio da tua ausência se cala para ouvir. basta. prefiro viver com muito pouco, do que quase viver contigo.

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