Tuesday, April 12, 2011

Nada (que é nosso) se perde

Pediste ao mundo para fazer um minuto de silêncio e ele, sem estar habituado a tais desígnios, obedeceu-te. Os oceanos fundiram num só, os montes viraram caminho, os abismos adormeceram nos vales e há quem jure ter visto o céu a mergulhar em queda livre numa ilha deserta. Pararam as valsas, as poesias, os dramas e as sinfonias. Perdeu-se o rasto da tristeza, da melancolia, da saudade e da alegria. Todas as coisas se fecharam em vácuo e só o eco do nosso abraço se fez presente no momento em que paraste todos os relógios. Pediste ao mundo para fazer um minuto de silêncio e eu não te fiz esperar mais. ‘amo-te’ disse, primeiro devagar e a medo, depois mais depressa e a sorrir. ‘amo-te’ outra vez. Uma letra a seguir à outra, todas as letras numa só, a fonética e a semântica de mão dada, como nós. ‘amo-te’ além do tempo, roubado, ‘amo-te’ daqui até à lua (onde sabemos que há um lugar só nosso que não conhece coisas impossíveis). No minuto seguinte, sem ninguém reparar, seguimos viagem no teu cavalo branco.

E não olhamos para trás.

Friday, April 08, 2011

A fuga

O meu coração perdeu a fé e sem avisar ninguém fugiu para parte incerta. Despiu o fato vermelho de gala e cobriu-se num manto quase roxo. Fez luto de si. Renegou o mimo entre os lençóis de seda e a boa-noite sussurrada ao ouvido. Desafiou as leis da química, ignorou de vez a anatomia do desejo. Divorciou-se das aurículas, dos ventrículos e das válvulas. Não chorou nem se lembrou de avisar os amigos. O meu coração adormeceu menino e acordou homem altivo e orgulhoso. Atirou a aliança à primeira onda que encontrou e não se arrependeu. Desencantou-se. Esfumou-se na brisa, nas gotas de orvalho, na chuva que ameaça e não cai, no voo picado da andorinha que abandonou o bando. Desapareceu. Fechou as portas ao negócio e deixou um aviso para os mais cépticos a dizer ‘trespassa-se’. Não se dignou em deixar uma carta, um bilhete, uma chave no vizinho da frente. Não se lamentou de nada, nem se despediu dos afectos que viu crescer. Enterrou a saudade no quintal e fez uma fogueira de memórias. Vendeu o passado. Fechou as mãos dadas num baú enferrujado que fez questão de esquecer no quarto dos fundos. Cortou o cabelo e a esperança pela raiz. Deixou em terra os beatos e os lambe-botas, livrou-se dos sanguessugas, sacudiu do casaco os ateus, piscou o olho aos sonhadores. O meu coração fugiu para parte incerta e, apesar das juras de amor para sempre, não me levou com ele.