Friday, April 08, 2011

A fuga

O meu coração perdeu a fé e sem avisar ninguém fugiu para parte incerta. Despiu o fato vermelho de gala e cobriu-se num manto quase roxo. Fez luto de si. Renegou o mimo entre os lençóis de seda e a boa-noite sussurrada ao ouvido. Desafiou as leis da química, ignorou de vez a anatomia do desejo. Divorciou-se das aurículas, dos ventrículos e das válvulas. Não chorou nem se lembrou de avisar os amigos. O meu coração adormeceu menino e acordou homem altivo e orgulhoso. Atirou a aliança à primeira onda que encontrou e não se arrependeu. Desencantou-se. Esfumou-se na brisa, nas gotas de orvalho, na chuva que ameaça e não cai, no voo picado da andorinha que abandonou o bando. Desapareceu. Fechou as portas ao negócio e deixou um aviso para os mais cépticos a dizer ‘trespassa-se’. Não se dignou em deixar uma carta, um bilhete, uma chave no vizinho da frente. Não se lamentou de nada, nem se despediu dos afectos que viu crescer. Enterrou a saudade no quintal e fez uma fogueira de memórias. Vendeu o passado. Fechou as mãos dadas num baú enferrujado que fez questão de esquecer no quarto dos fundos. Cortou o cabelo e a esperança pela raiz. Deixou em terra os beatos e os lambe-botas, livrou-se dos sanguessugas, sacudiu do casaco os ateus, piscou o olho aos sonhadores. O meu coração fugiu para parte incerta e, apesar das juras de amor para sempre, não me levou com ele.

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