Tuesday, October 25, 2011

Qualquer coisa sobre a verdade

É verdade que te menti. Uma vez ou duas. Num impulso de cinderela. Num julgar quase infantil que a nossa história era sobre amor. Calei-te com um sim, talvez, se calhar não, não sei. Enquanto cá dentro alguma coisa morria de inveja da tua coragem a pronunciar as palavras proibidas sem vacilar. E o meu coração bateu mais devagar, indeciso e titubeante, por não saber o que quer dizer para sempre. Por pena de não caber na gaiola que escolheste para nós. É verdade que te queria querer mais. E não minto quando te chamo à noite, tu apareces vindo no nada que há à tua volta, e te peço para entrar dentro de mim sem sequer dizer olá. Não te minto enquanto te beijo e procuro nos teus lábios um motivo para tomarmos pequeno-almoço ou prepararmos juntos o jantar. E é verdade que não encontro. É verdade que o para sempre que prometes, e que é atrevido demais, deve ter-se enganado na porta. Ou no caminho de casa, tanto faz. É verdade que te menti. E depois da neblina, da penumbra, dos suores que se fingem íntimos, do calor que não aquece, há pouco de verdade para ti. Desculpa, meu querido quase amor, mas a partir de hoje a mentira fica do lado de fora. E tu também.

Sunday, October 23, 2011

Chegadas

Caminhei muito. Caminhei até o cansaço me fazer refém. Adormeci ao relento numa noite sem lua, nem estrelas ou histórias de embalar. Não tive frio e acordei na companhia das andorinhas. Fiz-me de novo ao caminho com a brisa a tira-colo e sem bússola a apontar para norte. Atravessei rios e montanhas, entre a adolescência perdida e o resto dum passado que não volta mais. Corri em campos de malmequeres e escolhi querer tudo de novo. Fiz-me menina e moça, novamente, entre girassóis que não conhecem chuva ou solidão. E num qualquer dia de verão voei para sul. Dei cambalhotas, brinquei à queda livre até me cansar de ser livre e cair. Dancei na relva molhada e, com os pés descalços, fiz de Alice. Perdi-me muitas vezes. E, nas restantes, descobri que não há destino além do lugar onde se pisa. Ou se sonha. Tropecei nas grandes certezas que há no mundo até as desacreditar. Uma por uma. Recomecei. Olhei para trás e não reconheci o rosto das pegadas que me seguiam. Aprendi a escrever o meu nome em minúsculas e a respeitar as palavras que valem mais do que os gestos. Ouvi todos os sons do silêncio até lhes adivinhar manias e humores. Desenhei um arco-íris no fim do horizonte e nadei nua num oceano abandonado na margem duma praia de ninguém. Caminhei muito. Até te encontrar. E agora, eu sei, o meu país és tu.

Wednesday, October 19, 2011

A insustentável leveza de gostar

Diz-me, por favor, como sobrevivo a mais um dia. A mais um dia deste gostar galopante que me devora a cada segundo e não pára nas meias horas. A este gostar que tatuaste entre o meu peito e o teu chão no último beijo à porta da casa que já te espera quando eu não estou. Às vezes irrito-me e abafo-o com a almofada e o sobrolho. Depois viro-me para o lado, e depressa te encontro no outro lado da cama entre sonos e sonhos. Volta de novo. O tal gostar que te ama, muito, e se enche de vaidade quando lhe dás a mão e lhe prometes um arco-íris logo pela manhã. Que se finge de sonso, surdo e altivo mas só quer saber de ti e das tuas manias de ser perfeito. Que são tuas e são verdade. Diz-me, por favor, como sobrevivo sem me perder no meio do ciclone. Onde se aprende a gostar de ti e a viver no sobressalto deste gostar. Que rouba tempo. E quando não rouba consome. Serve de tecto, de tenda, de lua cheia e céu estrelado. Diz lá, então. Como posso deixar o mundo girar e ouvir que a vida está difícil quando para mim a equação é simples. Eu e tu igual a nós. A uma felicidade feita à medida, um fato de corte geométrico, sem defeitos. Modelo único, versão moderna, relíquia numa sala secreta dum museu. Este gostar é tonto e faz o que quer. E ai de mim que falo a rimar, vejo mapas de tesouro nos sinais de trânsito, o pôr-do-sol na janela da sala. Já para não lembrar dos suspiros, que escapam mais depressa do que as palavras. Dos risos estouvados que fazem eco e acordam os vizinhos. Um dia destes somos motivo de reunião de condomínio e expulsos por justa causa. Diz-me, por favor, como sobrevivo. Como paro este fogo trepidante que ganha vida e corpo quando me abraças e me fazes esquecer que lá fora há uma selva onde ninguém se entende. Ou se ama. Se me explicares, com a mesma calma com que preparas o chá, como posso viver além de ti eu juro, meu amor, que fico contigo para sempre.

Sunday, October 16, 2011

Nada sobre o amor

Ela nunca tinha conhecido ninguém como ele. E não era pelo jeito desavergonhado de caminhar, a despreocupação do casaco sobre o ombro, muito menos pelo olhar enxerga almas. Não era nada disso. Havia qualquer coisa nele de nunca mais que a inquietava. E mesmo assim deixou-o invadir, e profanar, o território sagrado da intimidade. Ele entrou sem olhar para trás. E da vez seguinte nem bateu à porta. Escancarou-a e avançou. Com aquele ar superior de quem sabe sempre o destino, mesmo sem ler mapas. Ela rendeu a guarda. Destapou-lhe o ar de forasteiro e fez dele um homem de gestos. Uma vez, e outra, até deixar de as querer contar. E, no entanto, permanecia um manto nebuloso e turvo. O frio desassossegado daquela presença gato preto. Só mais tarde descobriu, a meio dum qualquer silêncio entre os dois, o que preferia ter deixado no esquecimento. Enquanto ele a abraçava, e beijava, com a sofreguidão dum coração abandonado ao relento ela entendeu. Ele nada sabia sobre o amor.

‘adeus.’

Vestiu-se com uma rapidez que desconhecia e deixou-o naquele lugar onde só o passado pode ficar. Num quarto vazio.

Monday, October 10, 2011

A contar vindo do céu

Não perguntes porquê. Mas pertencemos ao lugar das coisas impossíveis. Onde nada, ou muito pouco, faz sentido além do que alcançamos num abraço lilás. As perguntas não entram, as dúvidas são vetadas e o medo não tem chave. É lá onde me procuras e é lá, entre raios e coriscos, que te encontro. Todos os dias. Nesse lugar, que ninguém sabe aonde fica e que eu e tu tomamos de assalto, há primaveras e outonos ao dobrar da esquina, jardins de parar e embalar, tantas histórias para ouvir e querer viver de novo. Há coisas que não nos cabem mãos, tímidas e entrelaçadas, nem nos sonhos que tivemos antes de nós. No lugar das coisas impossíveis eu visto-me de vermelho e tu de azul. E o céu muda de cor de cada vez que sorrimos. Ora é tarde, ora é manhã, e pouco nos importa senão os gestos de meninice resgatada. O acontecer. Fazer figas, querer muito, querer tudo, jurar que é para sempre, porque assim tem de ser e não faz mal acreditar que o amor veio para ficar. E que, por um feliz acaso, sobrevive ao tempo e à vida que acontece lá fora. Por isso, meu amor, não duvides: enquanto o mundo gira o nosso lugar gira connosco. E se amanhã se fizer tarde, não te inquietes e confia, porque é já hoje que nos encontramos, novamente, como da primeira vez, na chispa do abraço lilás.

Wednesday, October 05, 2011

Qualquer coisa sobre as primeiras coisas

Sabes aquela ousadia de chegar em primeiro lugar? De jogar sem nada a perder, apostar tudo, o mais possível, por favor, rasar o chão e não cair? Sabes aquelas coisas loucas que só alguém que é feliz se lembra de fazer? Saltar, daqui para ali, voltar, conquistar o que é bom duma só vez, porque correr não basta e uma vida não chega para descobrir o tal mapa do tesouro que se perdeu no convés dum navio pirata. Querer o que é simples, o que é nosso, só nosso e partilhar muito até ser de todos. Dizer que sim, claro que sim, juntar adjectivos e predicados, convidar o amor para jantar. Sabes aquele querer muito, que não é tudo mas é quase tudo, aquele impossível que julgamos merecer? Ter na mão o bilhete premiado, receber a melhor parte sem escolher, ser salvo antes do acidente. Sabes? Perder norte, razão e não-me-toques, receber um beijo na porta da frente enquanto o mundo espera nos bastidores. Olhar nos olhos e não ter medo, olhar, mais uma vez, até corar a alma e o coração. Desaprender o significado de adeus. Não ter nada a esconder, chorar de tanto rir, e rir mais um pouco, olhar para as estrelas quando não há mais caminho para andar. E começar de novo. Sabes?