Friday, December 03, 2010

P.S. Gosto de Ti

nunca gostei, de ninguém, como gosto de ti.

sem mais rodeios: gosto muito de ti.

e nem me parece sequer normal, imagina tu, este gostar tanto de ti. houvesse um decreto-lei sobre o amor e estou certa que o primeiro artigo seria qualquer coisa assim: ‘declara-se, para os devidos efeitos, que o amor é um encontro de vontades’ e entre parêntesis ‘mútuas, conhecidas, consentidas, equilibradas’. entendes agora porque não me parece normal? como pode ser, normal, se nem sequer te dás conta que este gostar existe, que respira sôfrego, que ganhou uma vida maior que a minha, que pula e dança de cada vez que te sente perto? como pode ser, afinal, se me usurpou o bom-senso para o vender ao desbarato numa feira de raridades? este gostar não é normal. nem quer ser normal, tanto quanto percebo. adora exibir-se, pavonear-se, cirandar nu madrugada adentro, voar a pique em céu aberto, aventurar-se no abismo do teu umbigo. e sabes que mais? olha-me nos olhos em jeito de desafio, zomba da minha angústia, faz-me cócegas nos pés sempre que o quero silenciar debaixo dos lençóis. há dias encontrei-o a falar com a vizinha da frente, a contar-lhe que vamos ser felizes, eu e tu, que vamos ser uma família, ter um lar, que está para breve. ela acenou com a cabeça, convicta, pareceu-me ver-lhe os olhos lacrimejantes com a emoção da boa-nova. não lhe bastava minar todos os pedacinhos da minha vida entre quatro paredes, este gostar (de ti) não tem vergonha na cara, veste-se de vermelho quando sai à rua, fala alto e gesticula, conta anedotas, histórias de encantar e umas quantas mentiras. que sentido isto faz? já para não falar do mútuo consenso, o tal do decreto-lei. nem do pequeno detalhe de não desconfiares que me viraste a vida do avesso, qual Indiana Jones, naquela noite remota desfeita em saliva ardente. sim, aquela noite trágica em que a tua boca tomou conta de todos os sulcos e recantos da minha pele. que sentido faz, quando tudo o que mais quero é que repares neste meu gostar? calem-se os santos, os ateus, os cépticos, os descentres. calem-se de uma vez, calem-se já (ouve-me). quero que repares nas covinhas do meu sorriso, que acertes na cor dos meus olhos, que elogies o balanço do meu vestido. quero eu que tu saibas que me aflijo de cada vez que o teu cheiro tropeça em mim, que o meu corpo fica quieto e trémulo junto ao teu, enquanto as nossas mãos se passeiam num jardim de papoilas e malmequeres que mandei plantar só para nós. quero dizer-te que me deito a pensar em ti e que é o murmúrio quente e cheio do teu ‘bom dia’ que me desperta, não o ribombar estridente do despertador que me devolve sem réstia de pena para o vazio da tua ausência. percebes, agora, por que raio este gostar não é equilibrado? porque me deixou sem termóstato, vê lá bem, tudo à minha volta é fogo e ar e rastilho, despertou-me os sentidos, até os meus passos se fundem num samba e o cheiro a castanhas assadas arrepia-me, imagina, lembra-me o calor do teu peito encostado no meu.

um dia destes, (te) juro, ganho coragem e grito(-te) assim do outro lado da rua:
gosto muito de ti.

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