Monday, December 06, 2010

As razões que a razão desconhece

era mais fácil quando nos fingíamos de estranhos. quando, depois de mais uma noite de urgências e carências, fingíamos que o mundo continuava a girar, que a primavera vinha depois do inverno, quando fazíamos de conta que gostávamos que assim fosse, que a certeza do universo era a nossa religião. era mais fácil quando sem querer nos acotovelávamos na fila para o almoço e nos fazíamos de desentendidos, despercebidos, distraídos até, e virávamos a cara com o mesmo desdém dos turistas em terra de ninguém. e quando os nossos olhares se cruzavam era mais fácil, tão mais fácil, quando lhes atirávamos areia, rogávamos uma maldição, o que fosse preciso para deixar no esquecimento os abraços turvos e sôfregos trocados horas antes na clandestinidade da madrugada. quando fugíamos do cheiro um do outro a sete pés, mesmo quando o elevador teimava em nos acorrentar a escassos metros, quando nos vestíamos de preto integral para assustar qualquer pretensão de final feliz trazido no regaço dum domingo à tarde. era mais fácil quando nos passeávamos altivos, indiferentes, descrentes e dizíamos para quem quisesse ouvir, ou não, que a saudade era ilusão de óptica, miragem, oásis sem trilho de regresso. habituamo-nos ao conforto do esquecimento como quem se aninha numa manta-sofá. a passar ao lado da tentação do dia que acorda com o estremecer dos corpos colados, entrelaçados num só, pespegados nos restos de prazer que não se perderam na madrugada, como quem tem medo de ser queimado numa fogueira. era mais fácil quando nos despíamos do papel de amantes e nos obrigávamos a fazer um voto de castidade, uma penitência de silêncio, todas as rezas que fossem precisas para que a nossa história pagã ficasse enterrada num santuário longe da vista, de preferência longe do nosso faro de salteadores perdidos. era tão mais fácil quando os deuses e os santos compreendiam o ritual casa-trabalho-prazer-casa e não pediam explicações ou justificações. quando se escondiam acima das nuvens para não ouvir os gemidos que as nossas gargantas segredavam enquanto as minhas mãos procuravam as tuas e a lua testemunhava o caminho da nossa perdição. repito, era mais fácil quando nos fingíamos de estranhos. quando disfarçávamos o rubor do ‘bom dia’ à saída da confeitaria do costume com a capa da primeira revista que nos caísse no colo, e dissipávamos numa fracção de segundo a visão dos nossos corpos nus e cansados que, sem sabermos como nem porquê, persistiam em manter-se lado a lado no chão da tua sala. nunca vamos perceber, julgo eu, o alcance desta teimosia de nos entregarmos como adolescentes à descoberta insana do território do outro, mesmo conhecendo de cor todas as vias, passagens, atalhos e armadilhas e de nos rirmos das curvas, sulcos, até das imperfeições. nem tão-pouco vamos perceber a vontade de nos termos sempre que o sol se esconde, mais uma vez e outra, como se fosse a primeira ou a última. a vontade maior que todas as vontades, a vontade que é mal-educada, não pede licença para nada, vontade que empurra, invade e sai das entranhas a ferro a fogo. a mesma vontade que no fim se reduz a cinza, invariavelmente cinza que a brisa leva numa só rajada. era mais fácil quando nos fingíamos de estranhos. agora que decidi dizer-te ‘olá’ com a luz do dia a descobrir-me a vergonha e o sorriso tudo se complicou. de repente o mundo deixou de ser um lugar previsível e seguro, desconfio que as prisões abriram portas e que os ladrões andam a pilhar tudo por onde passam. e eu que me passeava sem algemas nas avenidas vejo-me confinada ao espaço aonde só chega a tua mão. agora que me expus sem dó nem piedade e que perdi o mapa de regresso a casa, dou voltas e voltas à procura do prazer do teu colo faça chuva ou faça sol. agora que abri a ferida lembrei-me que estou em alto mar sem bóia de salvamento à vista, agora que nem sei nadar e que não avisei ninguém para onde vinha, tudo se complicou. e o meu coração, que fingia contentar-se com as madrugadas clandestinas, pôs-se nu no meio da praça, meteu-se em pose num palanque e teve o descaramento de chamar pelo teu nome,

meu Amor.

No comments: