Thursday, October 14, 2010

Adeus

andei tempo demais à espera que me deixasses, amor. esforcei-me tanto para que me odiasses. não um ódio mansinho e passageiro como os que se compram numa birra de domingo à noite, mas um ódio visceral, dos que trespassam e destroem tudo por onde passam. dos que nem sequer deixam rasto, dos que apagam qualquer réstia de vida que por ali existiu. queria que implicasses com as manias das toalhas da mesma cor, que tropeçasses nos livros esquecidos sem inocência junto ao sofá, que te queixasses do pequeno-almoço na varanda que não chegou a acontecer. queria que não reparasses no último corte de cabelo, nas madeixas loiras despropositadas, na provocação da mini-saia-cinto, no perfume chanel que tatua todos os sítios por onde passa. queria que te irritasses com os meus ares de quase perfeita passeando nua pela casa de cigarro em riste. que te envergonhasses dos meus risos e achaques sem hora prevista para acontecer. que tirasses o 'amo-te' da ponta da língua, que não segredasses histórias de outros tempos ao meu ouvido, que te cansasses de procurar o meu corpo enquanto esperamos, deitados, pelo dia seguinte. queria mandar-te parar de cada vez que me roubavas para a nossa dança, dizer-te que nem gosto mais da música que um dia nos embalou num abraço só. que me esqueci da letra e que os acordes me irritam. gritar-te que nada mais é 'nosso' além do espaço vazio e silencioso onde nos vestimos de sombras e pó. queria que trocasses a fechadura, que me deixasses de chave na mão, do lado de fora.

esperei que me deixasses e tu não obedeceste. ao contrário, fixaste a tua presença a meu lado, como fazem as famílias quando velam os seus defuntos. criaste raízes em meu redor, cultivaste um jardim privado na palma da tua mão, só para eu sentir todos os dias o cheiro a malmequeres. ocupaste todos os poros da minha pele com o calor da tua, sempre atento ao mais pequeno vaciliar do meu sorriso. amealhaste os meus monossílabos à procura de um significado maior, pedinchaste a atenção do meu olhar, procuraste as minhas mãos pequenas e nem ligaste quando as descobriste secas e ásperas.

e o tempo foi passando, amor, sem nunca me deixares. enganei-me nas previsões, afinal. julguei-te mais forte e a mim mais fraca. num fim de tarde qualquer fui eu que quebrei o elo, o nosso elo. deixei tudo como estava - a casa sempre foi mais tua que minha, de resto - e antes de sair, a correr, pousei na mesinha da entrada um 'adeus' escrito num papagaio de papel. ouvi ainda, ao longe, a porta da frente fechar-se como trovão e tu a perguntar da janela da cozinha a que horas voltava para jantar.


não tive medo, nem olhei para trás.


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