Thursday, January 27, 2011

Pode ser já amanhã

Um dia destes rapto-te. Mas descansa, envio-te um aviso. Uma carta perfumada escrita à mão a dizer todas as coisas que sempre quis dizer e tu não deixaste. Sossega, vá lá, não vais ler nada que não saibas. Deixemos de lado as banalidades que nos maçam, os atropelos dos segundos sentidos que nos confundem, os olhares vazios que não combinam connosco. Deixemos para trás o que não podia ser, o que não chegou a acontecer, o que era e não foi. Deixemos de lado as pausas, os intervalos, paremos de vez com estes abraços tardios e com data de validade. Vamos ser felizes. Só isso: felizes. Vamos fintar esta coisa maldita que se veste de destino, vamos fugir para um sítio remoto onde ele não chega, nem tão-pouco tem aonde dormir. Vamos fazer as coisas impossíveis que sempre nos prometemos mas nunca nos autorizamos. Vamos dormir ao relento, olhar a lua nos olhos e sorrir quando ela se põe cheia só para nós, vamos cheirar margaridas até nos impregnarmos de primavera, vamos fazer uma corrida até ao horizonte (e voltar). Um dia destes rapto-te, meu amor. Mas seja lá para onde formos, eu prometo, vamos de mãos dadas.

Monday, January 24, 2011

Não é pecado

Desta vez peço-te que mintas. Não estranhes, não desobedeças, faz apenas o que te digo. Mente-me com todos os dentes, por favor, mente-me depressa senão desconfio que me escangalho em partículas de mimo por causa desse olhar que só diz verdades. É que ele não faz por menos e atira um ‘amo-te’ logo pela manhã, mal acorda e me vê indefesa e entalada nos lençóis que ontem eram meus e hoje acordaram nossos. O teu olhar devia ter uma máscara de Carnaval ou de Halloween, tanto faz, desde que esconda o descaramento que me faz corar da cabeça aos pés. Se não arranjares uma máscara põe-lhe ao menos uma venda, ou qualquer coisa opaca, que tape o brilho do meu sorriso que entretanto desaprendeu a viver sozinho. Mente-me, por favor, diz outras coisas além destas parvoíces que só me lembram dias de primavera e noites de lua cheia. Já agora, pede às tuas mãos que tenham modos. Ou modo pausa, se fores capaz. É que a sofreguidão com que procuram as minhas tem feito danos irreparáveis, coisa de urgência hospitalar. Os sintomas são os piores: palpitações, tremuras, euforia, alguma tolice. O médico teima em dizer que a doença dá pelo nome de ‘paixão’ e que, caso eu não repouse, pode evoluir para um estado mais crítico chamado de ‘amor’. Por isso peço-te que mintas. Não é por mim, meu amor, mas tenho medo que o meu corpo vacile. Se não conseguires – mentir – ao menos esforça-te por ficar ao meu lado neste delírio sem fim à vista. Se prometeres, e me abraçares com força, eu sossego o médico e digo que encontrei a cura.

Wednesday, January 19, 2011

Fatalidades

Então és mais velho que eu. Para falar verdade, isso não me importa muito. Importa-me mais o atrevimento das tuas mãos, o nariz arrebitado e, definitivamente, o jeito do teu cabelo quando se zanga com o pente. Não importa que me trates como uma miúda, a sério que não, viro costas ao paternalismo e saio à rua de saltos, cigarro em riste e saia travada. Tão-pouco importa que o meu riso estridente te embarace e que só atravesses a rua na passadeira. Um dia destes tiro algum tempo e explico-te que as ruas desertas podem ser atravessadas em qualquer lugar. E se estivermos de mãos-dadas nada de mal pode acontecer. Não importa que me tires o sono, o chão, a fala e a fome. Eu sobrevivo, não faz mal, eu sobrevivo se prometeres que um dia podemos ficar juntos em qualquer lugar que não aqui, onde todas os caminhos dão a um beco sem saída. A este beco onde tu não estás. Não importa o teu mau gosto com as camisas e os fatos escondidos no armário. Importa-me mais esse jeito de homem. Eu sei lá o que é isso, sempre tive queda para miúdos, tontos e desmiolados, que brincam ao faz de conta e desaparecem sem deixar rasto (antes assim, nunca fui boa a dizer adeus). Ouviste bem, importa-me mais esse jeito de homem que sabe tudo, que caminha sem pressa, que segura a vida como tem de ser: pelo pulso. Importa-me, acima de tudo, este quase gostar muito de ti. Este quase gostar muito que, afinal, é mais que muito: é demasiado. Um demasiado que mete medo. E isto é tão grave como faltar o ar. Se, de repente, o mundo ficasse sem oxigénio a consequente catástrofe não causaria tanta mossa como este quase gostar muito que, para que saibas, às vezes não é quase, é gostar muito de ti,

meu amor.

Thursday, January 13, 2011

O dia antes da Primavera

Não me peças para acreditar noutra verdade (que não esta):
o coração foi feito para ser quebrado.

Não vale a pena tapares o sol com a peneira, que é como quem diz: escusas de fingir que tens queda para príncipe. Não vale a pena, o fato fica-te ridículo. As calças são pequenas para o tamanho dos teus passos, desobedientes, e a casaco não segura nem metade do teu atrevimento. Despe-o, já. Desfaz-te dele. Queima-o. E desvia-te do meu caminho. Deixa-me olhar o sol de frente, por favor. Que se lixem problemas de pele e de retina. Dá-me tempo e espaço, dá-me coisas para ter medo. Não te esforces em proteger-me dos demónios que me atormentam na escuridão da tua ausência. O demónio és tu, não vês? E o veneno que destilas ainda perdura no pedaço de mundo que repousa no meu colo. Se nunca percebi de física nem de química, por que raio os meus pés insistem em fazer ninho nas tuas pegadas? Não percebes que quero caminhar sozinha? Deixa-me descobrir novos trilhos, experimentar atalhos, correr até ficar sem fôlego. Deixa-me perder em lugares além do teu campo magnético. Deixa-me cair, se for o caso. Se me tornei exímia no equilíbrio da corda bamba das tuas indas e vindas, não será desta que a gravidade me trai. Não te socorras da partilha. Eu lembro-te o significado: dividir em várias partes, possuir com os outros, participar, ter em comum. Não ouses, sequer, falar em partilha. Se em tempos fiz ouvidos moucos às tuas palavras loucas, agora, basta. É a realidade que me puxa para diante com a força de mil dragões. Não rias: é coisa séria e o prognóstico reservado. Preciso de dar descanso ao meu pobre coração, o médico recomendou repouso absoluto de ti. Deixaste-o entregue ao abandono. E entre a fome a sede ele acabou por quebrar. Não te preocupes com os cacos, querido, dizem os entendidos que em terreno fértil nasce sempre uma flor mais bonita. Deixa-me. É que, sem ti, todos os caminhos vão dar à Primavera.

Monday, January 10, 2011

Ódio de estimação (disse ódio?)

o problema não és tu. o problema é o teu cabelo. é isso mesmo. o teu cabelo preto quase liso, quase meu. o teu cabelo de corvo solitário, de deus pagão, de ateu. o problema é o teu cabelo perfeito. chamariz de infortúnios, vendilhão de promessas por cumprir. o teu cabelo é o culpado da dor de cabeça monstra que carrego junto ao peito, como uma cruz, é o culpado da falta de ar, dos achaques em plena luz do dia. o teu cabelo enfeitiçou-me, tenho quase a certeza. às vezes, tu não reparas, prega-me sustos de morte e nem avisa. atira-me contra um poste de alta tensão e fica a rir-se da minha dor, como um louco, enquanto a electricidade me abre em chagas e carne viva. terminado o festival pirotécnico, e sem que ele me ajude, deixo-me ficar no chão, queimada e desnorteada, ansiosa para que os segundos passem rápido e a luz ao fundo do túnel não tenha perdido o comboio. qualquer lugar é melhor, mais seguro quero eu dizer, que este lugar por onde se passeia o teu cabelo. perdoa-me. mas ele mata-me. o teu cabelo preto, que à noite se pinta de vermelho-sangue-suga, mata-me. gosto tanto dele que até dói. gosto dele todos os dias, incluindo as manhãs em que não está por perto e o odeio. é lindo o preto do teu cabelo. por um triz não é meu. e as minhas mãos bem queriam que fosse. lutaram, esbracejaram, suspiraram, fizeram trinta por uma linha. nada. o teu cabelo fez-se de importante e pediu para ser deixado a sós nos seus aposentos.

não te aflijas, meu amor,
não estou zangada.

o problema não és tu.
o problema é só o teu cabelo.

Thursday, January 06, 2011

Não é mentira

passeias-te ao meu lado como um susto. nunca tive soluços, mas estremeço só de sentir esse teu aroma agridoce que às segundas se mascara de barba por fazer e às sextas se veste de preto integral. és louco e perigoso, e quando queres és lindo e irresistível. e eu, que tenho medo de alturas, brinco à cabra cega no limbo que separa a vertigem do teu sorriso e o abismo do teu olhar. um dia destes vou tombar de tanto desejo. se calhar nem é desejo, é o intervalo entre o muito bom e o péssimo. qualquer coisa séptica entre a paixão e o ódio. um sentimento-tormento que está ainda por inventar, por traduzir, quem lá andou sabe do que falo. e não sabe, sente o que falo. sente o coração a latejar de pânico, desesperado e a gritar socorro ‘alguém me acuda que desta não me safo’. na maior parte das vezes tem razão, há uma emergência: a casa está a arder, e o coração morre queimado.

tenho quase a certeza que me vais esborrachar contra a parede com essa tua mania irritante de me olhar de cima para baixo. eu sei lá o que é isso. só sei que nem de gaiolas gosto, mas vejo-me a contar os minutos para as seis da tarde, a hora do encontro marcado com o teu sobrolho levantado junto à porta do elevador. ‘tu primeiro’. caramba e esse vício de seres politicamente correcto, cavalheiro que engana-tolas (ou todas), por um triz não me atira abaixo dos tacões. componho-me e agradeço, sem tu ouvires digo aos anjos para irem a correr avisar o senhor do condomínio que a máquina sobe-e-desce tem de parar neste instante entre o primeiro andar e o rés-do-chão, se faz o favor. eu nunca dei muito trabalho é só um favor, juro que não peço mais nada, até faço um sacrifício qualquer, um daqueles penosos, muito difíceis ou quase impossíveis.

eu prometo: se me concederem 5 minutos de tempo interrompido contigo – meu amor – eu penso seriamente em te esquecer.

prometo.

nem que ande a vida inteira a cumprir a promessa.

Monday, January 03, 2011

Aqui

não ligues ao mundo lá fora. perde-te um pouco mais nas horas e nos abraços e fica comigo até o sol nascer. desconfio que o inverno ainda não foi embora, por isso, deixa-te ficar na manta-sofá enquanto te conto mais uma história de embalar. puxa-te para os meus sonhos e dá-me a mão se tiveres medo de cair. eu agarro-te, sempre. contorna os meus lábios com o teu dedo indicador, desenha neles um coração ou uma estrela, e diz-me que o mimo tem sabor a biscoitos de canela. como aqueles que te fiz ontem à noite. segreda-me ao ouvido um cliché qualquer, eu prometo que o enrosco no meu beijo e o levo a dar uma volta pelo corredor. está frio, não ligues ao mundo lá fora. guarda o sobretudo no armário e fala baixinho para não acordares o silêncio que adormeceu ao nosso lado. soletra palavras longas e difíceis e deixa-me dançar sem música em cima dos teus pés. faz-me girar nos teus braços como uma bailarina, se quiseres eu visto aquela saia de tule rosa e calço as sabrinas que me deste de presente. não te envergonhes se disser, quase a sorrir, que te adoro daqui até à lua e da lua até a este quarto lilás. é que tu não sabes, mas o amor vive destas coisas perfeitas, tão perfeitas que roçam o ridículo.

(não o procures lá fora).