Tuesday, December 13, 2011

Qualquer coisa sobre feitiços

Ela visita-o de madrugada, a horas tardias e famintas, como se dum ritual se tratasse. Assim acontece desde a primeira noite em que prometeram ficar juntos para sempre. Ou se não prometeram, queriam muito ter prometido. Às vezes, a vida não precisa de ser falada para ser verdade. Nem tem como escapar às inevitabilidades dos quereres. Que, sem querer, roubam fôlego, chão e lua cheia e profanam os territórios sagrados das certezas absolutas. No início eles resistiram. Fecharam-se em copas, espadas e valetes, fintaram sinais, semáforos e evidências, esconderam as provas do crime, meteram trancas à porta e ao coração. Esperaram que o mundo continuasse igual, mas o mundo nunca mais foi o mesmo e sucumbiram. Por isso, e sem pedir licença, ela entra-lhe pelos sonhos adentro. Como um arco-íris vestido de preto e branco. Um jogo de xadrez de linhas curvas que ganha, sempre, sem precisar de dizer xeque-mate. Não é a vitória que interessa, afinal, mas as linhas onde eles se movem. Os dois. Onde se movem e dançam e se esgotam antes do dia nascer. Onde são gaivotas e marés, alquimistas de vontades, salteadores de gestos e segredos, laço e gaiola aberta num sopro, queda livre e rede junto à relva, compasso de pulso sem ritmo. Onde são mais do que se adivinham quando ela, pé ante pé, o visita de madrugada e ele, sem a perder de vista, desenha um céu estrelado no fundo da cama.

1 comment:

João Ricardo Lopes said...

De vez em quando passo por aqui como quem vai a um café de estimação e se delonga no prazer de se sentir aconchegado. Pequenas histórias as suas, mas sempre muito vívidas... Gostei muito deste começo "Ela visita-o de madrugada, a horas tardias e famintas, como se dum ritual se tratasse."