Tuesday, August 30, 2011

Um bocadinho de quase tudo

‘amanhã à mesma hora, pode ser?’
‘sim.’

Os corpos entenderam-se primeiro. Ninguém pediu nada a ninguém. Era como se ele conhecesse a porta de entrada, e ela a abrisse sem precisar de ouvir a campainha. Sem pressas, nem vagares, ela deixou-o conquistar todos os territórios que, antes dele, foram deixados ao abandono. Pintou os quartos de azul céu e verde água, limpou o marco do correio, abriu as janelas e deitou fora o que restava da outra vida que, entretanto, tinha ficado órfã. Apaixonaram-se em silêncio. Só depois vieram as palavras. A medo. Porque ambos sabiam que as letras – quando se juntam - são mais mentirosas do que as mãos. Começaram por habituar-se aos sons das sílabas simples e só mais tarde, bem mais tarde, deixaram entrar em bicos de pés as conjugações quase perfeitas sobre o amor e a saudade. Quando não sabiam o que dizer, riam-se. E quando o riso acabava ela fazia-lhe cócegas e de novo tudo parecia fazer sentido. Ela tinha-se esquecido das coisas essenciais sobre os pequenos gestos. Ele, céptico convicto, ensinou-lhe o que sabia sobre esquecimento e novas descobertas. E, quase sem reparar, ela deixou-se levar naquela odisseia até ao fim do mundo que, estranhamente, parava sempre ali, naquele espaço interrompido onde as mãos dele agarravam as dela.

‘e se eu não quiser esperar por amanhã? e se quiser agora?’
‘pede, meu amor.’


Sunday, August 28, 2011

Adeus verão

Não me deixes adormecer assim. Mal aqui, quase ali, algures sem ti. Entre portas e janelas, abertas, cortinas ansiosas e uma mão cheia de esperança que gela ao mínimo sinal de alarme. Nesta estrada que virou atalho, mata serrada, colchão ao relento, casa abandonada. Não me deixes adormecer assim. Debaixo deste ar teimoso que emudece na tua ausência. Atrás de palavras, gigantes, que falam tudo e dizem muito pouco. Escondida nesta trepadeira de coisas por viver, contigo, ou só para viver. Não me deixes adormecer assim. Tira as teimas, as manias, as fobias. Larga as algemas. Deixa a vida lá fora, à espera, e vem mostrar-me o lugar onde nascem as estrelas cadentes. Quero uma janela com vista para nós, um sofá com pôr-do-sol, uma dança pé sobre pé. Muito riso, pouco juízo, mais sentido que razão. Quero deitar-me na areia molhada dos teus passos, estremecer sem ter frio, dar-te a mão no escuro quando o colo não basta. Quero roubar os tesouros perdidos do teu sorriso, mergulhar no teu abraço de olhos abertos, voar até à lua e adivinhar-te à distância. Quero bolas de neve, bailarinas de cristal, caixas de música e umas quantas histórias que mais ninguém conhece. Quero ler-te entrelinhas, esperar pelas reticências, esquecer pontos finais. Ouvir-te dizer ‘shiu’ enquanto uma qualquer lareira se acende entre o teu ombro e o meu pescoço. Quero esgotar a bilheteira, pedir exclusividade, passadeira vermelha e vestido rodado. Quero brincar ao faz de conta, tropeçar no teu navio pirata e avistar ao longe a tal ilha deserta onde o sol nunca se esconde. Não me deixes adormecer assim. Não assim. Se tiver mesmo de ser promete, com aquele jeito irresistivelmente acertado de prometer, que me encontras logo a seguir no meio dum sonho azul.


Wednesday, August 03, 2011

Intimidades

Não te afastes. Chega-te perto, bem perto, chega-te para mim e conta-me histórias de amor. Faz-nos personagens principais, dá-me cabelo loiro e a ti olhos azuis. Podemos ser mais novos ou mais velhos, o que quiseres. Desde que os meus lábios saibam encontrar os teus na bruma do bosque encantado. Chega-te mais, cala-me com um sorriso avelã, oferece-me um ou dois sonhos para brincar e aninha-me no teu colo. Deixa-me ficar, ficar só por ficar, ficar sem ter para onde ir porque é mesmo lá onde quero chegar, e ficar, sem pressa de ir embora. Desliga despertador, a lua se for preciso, entra comigo de mão dada nesta madrugada que foi feita para nós. Deseja-me dos pés à cabeça, enrola-me nos teus braços até a cama corar de desejo. Acorda vizinhos, pedintes, o mundo todo, chama a polícia e os bombeiros, és um perigo eminente e eu estou no epicentro da zona vermelha. Abafa-me a loucura, pede-me mais que eu dou-te tudo. Mostra-me surpresas no fundo do corredor. Tapa-me os olhos e a vergonha. Fecha a cortina que eu quero procurar-te nua entre a sala e o chão. Veste-me de branco com a língua e penteia-me o cabelo com os dedos da mão direita. Não me contes o fim. Traz chocolates, a tua manta preferida, uma estrela e uns quantos pirilampos. A vida começa aqui, meu amor, entre o longe do que fomos e o perto do que somos. Até já.