Saturday, February 19, 2011

O que tiver de ser

Eles que estranhem e se enganem. Que desacreditem até. Nós sabemos que o amor é simples e acontece de repente. E o amor fica-nos bem. Eles que atirem pedras para o mar e nadem contra as ondas. Nós sabemos que o pôr-do-sol é um encontro a dois que nunca espera nem se atrasa. Eles que rebolem na areia e desfaçam castelos. Enquanto isso, tu és príncipe e fazes de mim tua princesa no conto de fadas que é só nosso e não está escrito em lugar algum. Eles que finjam e mintam e se atropelem no mais ou menos. Nós dizemos verdade e até a etimologia nos perdoa por não sabermos tudo sobre o verbo gostar. Eles que se abandonem e se percam no labirinto do que não pode ou deve ser. Nós somos o porque sim. E enquanto assim for, meu amor, haverá sempre primavera ao virar da esquina. E eles nem desconfiam.

Tuesday, February 15, 2011

Coisas daqui

O mundo lá fora que diga coisas absurdas. Eu faço ouvidos moucos e aninho-me no teu colo de algodão doce. E entre a curva do meu nariz e a cicatriz do teu joelho o silêncio perde-se em riso e o riso faz-nos bem. O mundo lá fora que continue a girar. Tu fazes troça, viras-me do avesso e convidas-me a passear na tal avenida onde podemos ser turistas sem que ninguém desconfie. Na mesma avenida onde, de noite, a nossa felicidade não é sonora mas faz parar o trânsito. O mundo lá fora que nos chame à razão. Nós fazemos caretas e damos lambarices às palavras. Pedimos ao sim para se mascarar de não, e apresentamos o de vez em quando ao sempre. Já de manhãzinha prometem cuidar-se até que a semântica os separe. O mundo lá fora que aconteça. Muito pouco ou nada mais importa senão esta coisa nossa que não cabe em lugar algum, mas sabe sempre o caminho de regresso a casa.

Thursday, February 10, 2011

Sem direito de resposta

Devolve o que roubaste. Ouviste bem: devolve tudo o que me roubaste. Desta vez não estou a brincar. Nunca fui de deixar as coisas pela metade, por isso nem com as sobras podes ficar. Quero que me devolvas tudo. Devolve-me o sorriso, deixa-o correr para o meu colo e pousar-se na minha boca como algodão doce. Deixa-o lambuzar-se nas minhas bochechas até ficarem coradas de mimo. O meu sorriso não te conta, mas está farto de viver esquecido no fundo do teu bolso como um bilhete de lotaria que não foi premiado. Queixa-se de abandono e eu quero-o de volta, quero-o no único lugar onde fica bem: entre o meu nariz e o meu queixo. Devolve-me as palavras que te disse ao ouvido. Devolve-as. Não faz sentido viverem suspensas no teu silêncio que nada percebe de metáforas. Devolve-me as músicas que te dediquei. Também aquelas que te cantaram sobre nós. Coloca-as nos cds vazios que deixei em tua casa e envia-as pelo correio para a terra do nunca. O mundo que guardo nas mãos está cansado das tuas músicas com ares de noites estreladas. E eu não gosto de contar estrelas. Devolve-me a magia das minhas histórias. Se não percebes, nem te encantas, devolve-me a magia. Devolve-me os príncipes e as princesas, não te esqueças das fadas nem dos duendes. Devolve-os a todos. Devolve-os que eles aguardam por um final feliz que só eu, sem ti, lhes posso dar. Devolve-me os gestos de carinho. E os outros, também, os de paixão e os de quase-amor-se-tu-tivesses-querido. Embrulha-os em veludo vermelho e deixa-os no parapeito da janela, à sombra para não azedarem. Quando não estiveres por casa eu vou buscá-los. Prometo que nem darás conta e os teus braços poderão finalmente libertar-se do peso das coisas felizes. Já agora, se não te causar transtorno, devolve-me o meu coração. Ele diz, com razão, que não o acarinhas como dantes e que afinal o novo lugar aonde o escondeste é frio e escuro. Tem medo desse teu peito mudo, despojado e sem morada fixa. Devolve-o agora. Devolve-o depressa antes que seja tarde demais. Antes que morra de medo e de desamor. Devolve-o ainda hoje. Está mais que decidido: vou levá-lo, pela mão, para bem longe deste deserto árido que te serve de albergue.

Thursday, February 03, 2011

Que dia é hoje?

Na maior parte dos dias não gosto de ti. São os dias de copo meio vazio. Dias lúcidos de decisões certeiras, de coisas que fazem sentido, de caminhos que se orientam para norte. São dias serenos onde até o mar ajuda e se deixa embalar pelo horizonte. Dias em que o sol aquece o rosto e a alma e antes de ir embora não se esquece de dizer adeus. Na maior parte dos dias não gosto nada de ti. Vives à sombra do meu sorriso e nem o meu olhar se desvia quando me acotovelas à procura de atenção. Passas-me ao lado sem que o teu cheiro me tire o fôlego e o sono. Vivo apesar da tua existência teimar em ser gente de carne e osso. Vivo além de ti. São dias em que os meus passos se movem seguros e deixam marca no asfalto. Dias em que a razão vence a emoção sem braço de ferro, porque a vida sem ti não precisa de jogos para nada. Depois há os outros dias. Os dias de copo meio cheio. A transbordar de ti. São dias em que te amo tanto, mas tanto, que quase te odeio. Odeio-me a mim, também. Dias de sufoco, de ar irrespirável, de estufa trancada, de atalho que só pára no abismo do teu umbigo. Dias sem manhãs, sem tardes, sem mais nada além da tua presença absoluta em todos os lugares por onde passo. Não te consigo fugir. Não te resisto. Quero correr e não posso, tenho as mãos algemadas às tuas e ninguém sabe aonde está a chave. Não sei se choro, ou se rio. Não sei, sequer, sair do teu abraço. São dias em que, se calhar, te amo a sério. Isto se um amor assim, desmesurado e desregulado, conseguir ser sério, ou se ele quiser saber da seriedade para alguma coisa. São dias em que te amo. Muito. Dias em que o meu corpo não responde a mais nada senão ao assobio do teu cabelo a roçar nos meus ombros. São dias em que os meus pés não obedecem ao bom senso e te convidam para dançar no meio da rua. E tu aceitas. Dias que não são dias, são noites. E noites onde nem a lua se atreve a sair à rua com medo de te encontrar num beco sem saída. Noites que não passam, não descansam e se alimentam do desassossego dos nossos beijos clandestinos. Vivo para ti e, às vezes, nestes dias que são noites tu vives para mim. Até chegarem os dias em que não gosto de ti.